Gênesis 3 — Comentário de Matthew Henry

Gênesis 3

Versículos 1-5: A serpente engana Eva; 6-8: Adão e Eva transgridem o mandamento divino e caem no pecado e miséria; 9-13: Deus chama Adão e Eva para que respondam; 14 e 15: A serpente é amaldiçoada; a semente prometida; 18-19: O castigo da humanidade; 20 e 21: A primeira vestimenta da humanidade; 22-24: Adão e Eva são expulsos do paraíso.

Vv. 1-5. Satanás atacou os nossos primeiros pais para levá-los a transgredir, e a tentação causou-lhes uma fatalidade. O tentador foi o Diabo, que entrou na serpente. O plano de Satanás era arrastar os nossos primeiros pais ao pecado e, assim, colocar separação entre eles e o seu Deus. Deste modo, o Diabo foi desde o princípio um homicida e um grande realizador de maldades. A pessoa tentada foi a mulher: a tática de Satanás foi entabular uma conversa com ela, enquanto se encontrava sozinha. Existem muitas tentações perante as quais o fato de a pessoa estar a sós, fornece uma grande vantagem ao tentador; ao passo que a comunhão entre os santos cuida em grande medida da fortaleza e segurança deles. Satanás tirou proveito, ao encontrar a mulher sozinha, e nas proximidades da árvore proibida.

Satanás tentou Eva para, através dela, derrubar Adão. A sua tática é nos tentar por meios dos quais não suspeitamos, e por pessoas que possuam a maior influência sobre nós. Satanás colocou em dúvida se era ou não pecado comer do fruto daquela árvore. Não deixou o seu desígnio aparente no princípio; porém, formulou uma pergunta que parecia inocente. Aquele que deseja estar a salvo, deve ter o cuidado de não conversar com o tentador, pois este citou mal o mandamento, falando de forma sarcástica. O Diabo, um mentiroso juramentado, é também desde o princípio um escarnecedor; e os escarnecedores são seus filhos. A artimanha de Satanás consiste em falar da lei divina como sendo duvidosa ou irracional e, assim, atrai as pessoas ao pecado; a nossa sabedoria consiste em mantermos firme a nossa crença no mandamento de Deus, e um elevado respeito por Ele.

Como foi que Deus disse? Não mentireis, não tomareis o seu nome em vão, não vos embriagueis, e outros mandamentos como estes? Se estou certo de que Ele o disse, para mim está dito corretamente; e, por sua graça, eu o cumprirei. Entabular uma conversa como esta com a serpente foi uma fraqueza de Eva. Por sua pergunta, Eva deveria ter notado que a serpente não tinha boas intenções; portanto, deveria ter retrocedido. Satanás ensina os homens primeiramente a duvidar, e em seguida a negar. Promete-lhes benefícios se comerem deste fruto. O seu objetivo é introduzir o descontentamento com o seu estado presente, como se este não fosse tão bom quanto poderia ou deveria ser. Nenhum estado por si mesmo dará contentamento, a menos que a mente seja posta nele. Satanás os tenta para que busquem uma ascensão, como se fossem dignos de serem deuses.

O próprio Satanás arruinou-se quando desejou ser como o Altíssimo, e, logo, procurou infectar os nossos primeiros pais com o mesmo desejo para também arruiná-los. O Diabo ainda atrai as pessoas à sua esfera de interesse, a fim de sugerir-lhes pensamentos maus acerca de Deus, e falsas esperanças de alcançarem benefícios por meio do pecado. Portanto, tenhamos sempre bons pensamentos a respeito da pessoa de Deus, como sendo Ele mesmo o Supremo bem, e pensemos mal sobre o pecado, como sendo o supremo mal: deste modo resistiremos ao Diabo, e ele fugirá de nós.

Vv. 6-8. Observe os passos da transgressão: não são passos ascendentes, mas descendentes, em direção ao abismo. Primeiro: Ela viu. Uma grande quantidade de pecados vem através dos olhos. Não olhemos para aquilo que traz consigo o risco de estimular a concupiscência (Mt 5.28). Segundo: Ela tomou. Foi seu próprio ato e obra. Satanás pode tentar, porém, não pode obrigar; pode nos persuadir a ajoelharmo-nos diante do precipício, porém, não pode lançar-nos dali (Mt 4.6). Terceiro: Ela correu. Quando ela olhou para o fruto, talvez não tenha tido a intenção de tomá-lo; ou quando o tomou, não tinha a intenção de comê-lo: porém, acabou fazendo-o. É uma atitude sábia deter os primeiros movimentos do pecado, e abandoná-lo antes de ver-se comprometido com ele. Quarto: Deu-o também ao seu marido. Aqueles que fazem o mal estão dispostos a arrastar outros a fazerem o mesmo. Quinto: Ela comeu, por não levar em conta a árvore da vida.

Por não comer daquilo que era permitido por Deus, mas, ao invés disto, comer do fruto da árvore do conhecimento, que estava proibido, Adão mostrou claramente o seu desdém por aquilo que Deus lhe havia outorgado, e o seu desejo por aquilo que Deus considerou prudente não lhe dar. Desejava ter o que quisesse e fazer o que lhe trouxesse prazer. Definindo em uma só palavra, o seu pecado foi a desobediência (Rm 5.19), desobediência a uma ordem clara, simples e expressa. Adão não tinha uma natureza pecaminosa que o impulsionasse ao pecado; pelo contrário, tinha a liberdade de escolha, conforme a sua vontade, com toda a sua força, não debilitada e nem desequilibrada. Porém, apartou-se com muita prontidão, arrastando toda a sua posteridade ao pecado e à miséria. Então, quem pode dizer que o pecado de Adão, em si, causou pouco dano? Já era demasiadamente tarde quando Adão e Eva viram a necessidade de comer a fruta proibida. contemplaram a felicidade da qual caíram, e a miséria em que naufragaram. viram um Deus amoroso irritado, e a perda de sua graça a seu favor.

Aqui se vê que desonra e transtorno o pecado produz; torna tudo aquilo que se apresenta em maldade, e destrói todo o conselho. cedo ou tarde o pecado acarreta a vergonha; seja a vergonha do verdadeiro arrependimento, que termina em glória, seja a vergonha e confusão perpétua, na qual despertarão os maus no grandioso dia. Aqui se vê em que consiste habitualmente a necessidade daqueles que pecaram. cuidam mais de salvar o seu crédito diante dos homens do que de obter o perdão de Deus. As desculpas que os homens dão para encobrir e diminuir a importância de seus pecados, são vãs e frívolas; assim como os aventais de folhas de figueira que foram feitos, não são capazes de melhorar a situação. Não obstante, todos nós temos a tendência de procurar encobrir as nossas transgressões, como Adão.

Antes de pecar, eles acolhiam as bondosas visitas de Deus com gozo humilde; agora, o Senhor se convertia em um terror para os dois. Não devemos nos assombrar, portanto, de que eles tenham se tornado terror para si mesmos, e ficaram repletos de confusão. Este fato mostra a falsidade do tentador, e a fraude das suas tentações. Satanás prometeu que estariam a salvo. Porém, eles não podiam sequer pensar que seria assim! Adão e Eva tornaram-se infelizes consoladores, um para o outro!

Vv. 9-13. Observe a surpreendente pergunta: "Adão, onde estás?" Aqueles que se desviam de Deus pelo pecado, devem considerar seriamente onde estão: estão longe de todo o bem, em meio a seus inimigos, escravizados por Satanás, e no real caminho para a ruína total. Esta ovelha perdida teria vagado para sempre, se o Bom Pastor não a tivesse buscado, e lhe dito onde foi que havia se desviado, não poderia ser fácil, e nem cômodo. Se os pecadores quisessem considerar onde estão, não descansariam até que retornassem a Deus. Um comportamento falho e néscio, comum àqueles que cometeram o mal, é que quando se lhes pergunta a respeito deste assunto, reconhecem somente aquilo que é tão evidente que não se pode negar. Assim como Adão, temos razão para ter medo de nos aproximarmos de Deus, se não estivermos cobertos e vestidos com a justiça de Cristo.

O pecado aparece mais claramente diante do espelho do mandamento, e assim Deus o colocou diante de Adão; e neste mesmo espelho devemos olhar para o nosso próprio rosto. Porém, ao invés de reconhecer o pecado em toda a sua magnitude, e assumir a vergonha em si mesmos, Adão e Eva justificaram o pecado, e carregaram a vergonha e a culpa sobre outros. Todos aqueles que são tentados apresentam uma estranha tendência a dizer que são tentados por Deus, como se o nosso abuso dos dons de Deus pudesse desculpar a nossa transgressão das leis divinas. Aqueles que estão prontos a aceitar o prazer e a ganância do pecado são tardios para assumir a culpa e a vergonha consequentes dele.

Aprendamos, então, que todas as tentações de Satanás são seduções; os seus argumentos são enganosos; os seus incentivos são armadilhas; quando ele fala bem, não há motivo para lhe darmos crédito. É pelo engano do pecado que o coração se endurece. Veja Romanos 7.11; Hebreus 3.13. Ainda que a sutileza de Satanás fosse capaz de arrastar-nos ao pecado, de nenhum modo justificaria que estivéssemos em pecado. Ainda que ele seja o tentador, nós seríamos, neste caso, os pecadores. O fato de termos sido enganados não diminuiria o nosso pesar por causa do pecado; antes, a nossa indignação deveria ser aumentada em relação a nós mesmos, por termos permitido que fôssemos enganados por um conhecido e traiçoeiro inimigo jurado, que quer a destruição de nossa alma.

Vv. 14 e 15. Deus dita a sentença. E inicia por onde começou o pecado, com a serpente. Os instrumentos do Diabo devem compartilhar os castigos de Satanás. Sob o disfarce da serpente, o Diabo é sentenciado a ser degradado e maldito por Deus; detestado e aborrecido por toda a humanidade: também a ser, ao final, destruído e arruinado pelo Redentor, fato que pode ser concluído pelo esmagamento de sua cabeça. Declara-se a guerra entre a semente da mulher e a da serpente. O fruto desta inimizade, é a existência de uma guerra contínua entre a graça e a corrupção nos corações do povo de Deus. Satanás, por meio de suas corrupções, os esbofeteia, os ciranda e procura devorá-los. O céu e o inferno jamais poderão ser reconciliados, tampouco a luz e as trevas; assim também não há acordo entre Satanás e a alma santificada. Além do mais, existe uma luta contínua entre os maus e os santos deste mundo. É feita uma promessa bondosa a respeito de Cristo, como o libertador do homem que está caído por causa do poder de Satanás.

Esta era a aurora do dia do Evangelho: assim que a ferida foi feita, o remédio foi provido e revelado. Esta bondosa revelação de um Salvador chegou sem que a pedissem ou a buscassem. Sem uma revelação de misericórdia, que dê esperança de perdão, o pecador convicto naufragaria no desespero e endureceria seu coração. Pela fé nesta promessa, tanto os nossos primeiros pais como os patriarcas que viveram anteriormente ao Dilúvio foram justificados e salvos.

Foram dados detalhes a respeito de Cristo - Primeiro: A sua encarnação, ou a sua vinda em carne. Que o Salvador seria a Semente da mulher, teria ossos como os nossos ossos, que daria grande alento aos pecadores (Hb 2.11,14). Segundo: Os seus sofrimentos e morte. Foi designado que Satanás feriria o calcanhar do Messias, isto é, a sua natureza humana. Os sofrimentos de Cristo continuam através dos sofrimentos dos santos por causa de seu nome. O Diabo os tenta, os persegue, e os mata, e assim, fere o calcanhar de Cristo, que é afligido através das aflições dos santos. Todavia, enquanto o calcanhar é ferido na terra, a Cabeça está no céu. Terceiro: A sua vitória sobre Satanás. Cristo frustrou as tentações de Satanás, resgatou as almas de suas mãos. Através de sua morte, desferiu um golpe fatal sobre o reino do Diabo, uma ferida incurável na cabeça desta serpente. À medida que o Evangelho avança, ganhando terreno, Satanás cai.

Vv. 16-19. Por causa de seu pecado, a mulher é condenada a um estado de pesar e submissão; castigo adequado por este pecado, em que ela procurou satisfazer a concupiscência dos olhos, da carne e o seu orgulho. O pecado trouxe dor ao mundo; fez do mundo um vale de lágrimas. Não é de estranhar que as nossas dores aumentem quando os nossos pecados se multiplicam. "Ele te dominará", foi o mandamento de Deus. "Esposas, sujeitai-vos a vossos maridos". Se o homem não tivesse pecado, teria sempre se assenhoreado com sabedoria e amor; se a mulher não tivesse pecado, teria sempre obedecido com humildade e mansidão. Adão culpou a sua esposa, porém, ainda que ela tenha sido culpada por convencê-lo a que comesse o fruto proibido, foi culpa dele ter-lhe feito caso. Assim, a, frívolas escusas dos homens se voltarão contra eles mesmos no dia do juízo de Deus.

Deus colocou marcas de desagrado em Adão. Primeira: Amaldiçoou a sua habitação. O Senhor deu a terra aos filhos dos homens para que lhes fosse uma moradia confortável: porém, agora, está amaldiçoada por causa do pecado do ser humano. contudo, o próprio Adão não foi amaldiçoado, como foi a serpente, mas somente o solo por amor a ele. Segunda: Os seus esforços e prazeres tornaram-se amargos. O trabalho é nosso dever e devemos realizá-lo fielmente; é parte da sentença do homem, coisa que a ociosidade desafia de modo atrevido. O desconforto e o cansaço no trabalho são o nosso justo castigo, ao qual devemos nos submeter com paciência, uma vez que são menores do que aquilo que mereceríamos por causa de nossa iniquidade. A alimentação do homem se lhe tornaria desagradável. Porém, o ser humano não foi sentenciado a comer pó como a serpente; somente, a comer a erva do campo. Terceira: A sua vida também é encurtada. Porém, considerando quão cheios de problemas estão os seus dias, é um favor que sejam poucos.

A morte é espantosa por natureza, apesar de a vida ser desagradável, e com isto concluísse o castigo. O pecado introduziu a morte ao mundo: se Adão não ti;esse pecado, não teria morrido. Ele cedeu à tentação; porém, o Salvador resistiu a ela. Quão admirável a satisfação de nosso Senhor Jesus Cristo, que por sua morte e sofrimentos respondeu à sentença ditada contra os nossos primeiros pais! As dores de parto entraram na causa do pecado? Lemos sobre o fruto da aflição da alma de Cristo em Isaías 1.3,11. O estar sob a lei entrou juntamente com o pecado? Cristo nasceu sob a lei (Gl 4.4). Entrou a maldição juntamente com o pecado? Cristo foi feito maldição por nós, e morreu uma morte maldita (Gl 3.13). Os espinhos vieram com o pecado? Ele foi coroado de espinhos por nossa causa. O suor chegou por causa do pecado? Ele suou por nós, e o seu suor transformou-se em grandes gotas de sangue. A dor chegou com o pecado? Ele foi um varão de dores; em sua agonia a sua alma esteve sobremaneira dolorida. A morte veio com o pecado? Ele foi obediente até a morte. Assim, o remédio é tão grande quanto a ferida. Bendito seja Deus, por seu Filho Jesus Cristo.

Vv. 20 e 21. Deus deu nome ao homem e chamou-o de Adão, que significa "terra vermelha"; Adão deu nome à sua mulher, chamando-a de Eva, que significa "vida". Adão leva o nome do corpo mortal, e Eva o da alma viva. Nossa primeira mãe tinha em seu nome a bênção do Redentor, a Semente prometida, ao ser chamada de Eva, ou Vida; pois Jesus Cristo seria a vida de todos os crentes, e nEle seriam benditas todas as famílias da terra. Deve ser visto, além do mais, o cuidado de Deus por nossos primeiros pais, apesar do pecado deles. A vestimenta foi introduzida juntamente com o pecado. Temos poucos motivos para nos orgulharmos de nossas roupas que são, na realidade, a insígnia de nossa vergonha. Quando Deus fez roupas para os nossos primeiros pais, fê-las para abrigá-los, e eram roupas resistentes, rústicas e muito simples. Não eram mantos de escarlata, mas túnicas de peles.

Que os que estão vestidos com simplicidade aprendam aqui a não se queixarem. Tendo comida e abrigo, que estejam contentes; estarão neste caso tão bem quanto Adão e Eva. Que aqueles que estão finamente vestidos, aprendam a não fazerem das vestimentas o seu adorno. Supõe-se que os animais de cujas peles Deus os vestiu, foram mortos, não para serem comidos pelo homem, mas como sacrifício, para tipificar a Cristo, o Grande Sacrifício. Adão e Eva fizeram para si aventais de folhas de figueira, que era uma coberta demasiadamente estreita para envolvê-los (Is 28.20). Assim são todos os trapos de nossa própria justiça. Deus fez para eles túnicas de peles, grandes, firmes, duráveis, e na medida certa para eles: assim é a justiça de Cristo; portanto, "revesti-vos do Senhor Jesus Cristo".

Vv. 22-24. Deus expulsou o homem; disse-lhe que já não deveria ocupar e nem desfrutar daquele jardim; porém, o homem gostava do lugar e não estava disposto a partir. Portanto, Deus obrigou-os a sair. Isto significou a exclusão do homem e de toda a sua raça culpável, da comunhão com Deus, que era a bênção e a glória do paraíso. Porém, o homem foi somente enviado a lavrar o solo do qual foi tomado. Ele foi enviado a um lugar de trabalho árduo, e não a um lugar de tormento. Os nossos primeiros pais foram excluídos dos privilégios de seu estado de inocência, ainda que não foram livres do desespero.

O caminho à árvore da vida foi fechado. Daí por diante seria inútil que Adão e os seus esperassem a retidão, a vida e a felicidade através do pacto de obras, pois ao infringir o mandamento deste pacto, a sua maldição exigia plena vigência: seremos todos destruídos se formos julgados por este pacto. Deus revelou este fato a Adão, não para levá-lo ao desespero, mas para animá-lo a buscar a vida e a felicidade na Semente prometida, por meio de quem abre-se diante de nós um novo e vivo caminho em direção ao Lugar Santíssimo.