Estudo sobre Mateus 9:1-36

Mateus 9

Vimos em repetidas instâncias que no evangelho de Mateus não há nada que apareça por acaso. É um evangelho cuidadosamente planejado e desenhado. No capítulo 9 podemos comprovar outro exemplo deste cuidadoso planejamento, porque nele começamos a ver os primeiros sinais da tormenta que se vai preparando no horizonte. Aqui vemos como começa a crescer a oposição a Jesus. Aparecem os primeiros indícios das acusações que finalmente levarão Jesus à morte. Neste capítulo se formulam quatro acusações contra Jesus.

(1) Jesus é acusado de blasfêmia. Em Mateus 9:1-8 vemos como Jesus cura o paralítico ao perdoar os seus pecados. E escutamos como os escribas o acusam de blasfêmia, porque Jesus dizia ser capaz de fazer algo que só Deus pode fazer. Acusou-se a Jesus de blasfêmia por falar com a voz de Deus. Em grego blasfêmia significa literalmente calúnia ou maledicência, e os inimigos de Jesus o acusaram de insultar ou caluniar a Deus atribuindo-Se a Si mesmo poderes que estritamente pertencem a Deus.

(2) Jesus é acusado de imoralidade. Em Mateus 9:10-13 vemos Jesus em uma festa, sentado junto com coletores de impostos e outras pessoas reconhecidamente pecadoras. Os fariseus lhe pedem que explique por que se juntava com tais pessoas. No fundo queriam dizer que se Jesus andava com eles provavelmente fosse como eles. Jesus foi acusado de ser imoral por relacionar-se com pessoas imorais. Quando não gostamos de alguém é muito fácil torcer, tergiversar e interpretar mal tudo o que faz, atribuindo-lhe motivações que nunca teve.

Harold Nicholson conta uma conversação que sustentou em certa oportunidade com o veterano político inglês Stanley Baldwin. Nicholson, naquela época, logo começava sua própria carreira política, e o propósito de sua conversação com Baldwin era pedir-lhe conselho. E Baldwin lhe disse: "Você quer começar a carreira de estadista, e dirigir os assuntos do país. Pois bem, há três conselhos que eu posso lhe dar, a partir de minha longa experiência nestas coisas. Em primeiro lugar, se tiver uma assinatura de uma agência de recortes de periódicos, cancele imediatamente sua assinatura. Em segundo lugar, nunca ria dos enganos de seus contrários. E em terceiro lugar, endureça-se contra a atribuição de motivações espúrias."

Uma das armas favoritas de qualquer inimigo de um homem público é a atribuição de motivações espúrias; e isso é o que os inimigos de Jesus fizeram com Ele. (3) Jesus é acusado de ser lasso na prática piedosa. Em Mateus 9:14-17 vemos que os discípulos do João perguntam aos discípulos de Jesus por que seu Mestre não jejua. Jesus não seguia os esquemas ortodoxos da religiosidade e portanto os ortodoxos suspeitavam dele. Todo aquele que transgredisse convenções deveria sofrer as consequências; e especialmente o que transgredisse as convenções religiosas. Jesus transgrediu as convenções ortodoxas da piedade eclesiástica e foi criticado por isso.

(4) Jesus é acusado de estar aliado ao diabo. Em Mateus 9:31-34 vemos Jesus curando a um surdo, e seus inimigos atribuem a cura a um suposto pacto entre Jesus e o diabo. Sempre que se manifesta um poder desconhecido como ocorre, por exemplo, com a cura pela fé – há quem diz: "Devemos tomar cuidado, isto pode ser obra do demônio e não de Deus."

O estranho é que quando a pessoa vê algo de que não gosta, ou que não compreende bem, ou que contradiz seus preconceitos, com muita frequência o atribui ao demônio, e não a Deus.

Aqui temos, pois, o começo da campanha contra Jesus. Os caluniadores iniciam seu trabalho. As línguas viperinas envenenam a verdade, Atribuem-se motivações espúrias a Jesus. Começou o movimento para eliminar a esse perturbador Jesus.

Estudo sobre Mateus 9:1-8

Graças a Marcos 2:1 sabemos que este incidente teve lugar em Cafarnaum; e é interessante assinalar que a esta altura de seu ministério Jesus tinha chegado a estar tão identificado com Cafarnaum que poderia chamá-la de sua cidade". Cafarnaum era o centro de sua obra.

Levaram a Jesus um paralítico transportado em uma maca por uns amigos dele. Este é um belo quadro de alguém que se salva graças à fé de seus amigos. Se fosse por seus amigos, este homem jamais teria chegado à presença curadora de Jesus. Possivelmente já estava totalmente resignado com seu destino, tinha perdido todas as esperanças, Bem pode ser que seus amigos o tenham levado até contra sua vontade. Mas aqui está, bem perto de Jesus. Seja como for, o certo é que este homem se salvou graças à fé de seus amigos.

W. B. Yeats, em sua peça teatral O gato e a Lua tem uma linha que diz: "Você quase pode conhecer o homem santo porque tem como camarada, como amigo íntimo e da alma, a algum homem mau." É realmente uma das características do homem santo esse aferrar-se a alguém verdadeiramente mau ou sem consciência, até conseguir finalmente, graças a seus esforços, levá-lo à presença de Jesus Cristo. Não podemos obrigar a ninguém a que aceite a Jesus Cristo contra sua vontade.

Coventry Patmore disse que não se pode ensinar a outro a verdade religiosa; no máximo podemos indicar-lhe o caminho pelo qual ele mesmo a encontrará. Não podemos converter a ninguém em cristão, mas podemos fazer todo o possível para levá-lo à presença de Jesus Cristo.

A forma como que Jesus encara a este homem é surpreendente. Começa lhe dizendo que seus pecados estão perdoados.

Havia uma dupla razão que justificava um enfoque que nos parece tão fora de lugar. Na Palestina, todo mundo acreditava que as enfermidades eram consequência do pecado, e que nenhuma enfermidade podia curar-se até que o pecado que a tinha ocasionado fosse perdoado por Deus.

O rabino Ami disse: "Não há morte que não provenha de algum pecado, nem enfermidade que não provenha de uma transgressão." O rabino Alexandre disse: "O doente não se levanta de sua enfermidade até que seus pecados lhe tenham sido perdoados." O rabino Chija Ben Abba disse: "Nenhum doente pode curar-se se não tiver encontrado o perdão de seus pecados."

Esta relação inquebrantável entre o pecado e a enfermidade era parte das crenças ortodoxas do judaísmo nos tempos de Jesus. Por isso, não fica lugar a dúvidas no caso que estudamos: Esse homem não poderia aceitar que estava são até estar seguro de que seus pecados lhe foram perdoados. É muito provável que tivesse sido verdadeiramente um grande pecador, e que estivesse convencido de que sua paralisia era o resultado de seus pecados, o que não é de modo algum impossível; e sem a segurança do perdão jamais poderia ter sido curado.

De fato, a medicina moderna está perfeitamente de acordo em que a mente influi sobre o corpo, e que ninguém pode ter o corpo são se sua mente não goza de saúde.

Paul Tournier, no Livro de Casos de um Médico, relata precisamente um sucesso que exemplifica o que acabamos de dizer.

“Há, por exemplo, aquela moça que meu amigo esteve tratando de anemia durante vários meses, sem obter maiores resultados. Como um último recurso decidiu enviá-la ao escritório sanitário do distrito, para que obtivesse um certificado que lhe permitisse internar-se em um sanatório da alta montanha. Numa semana a moça voltou com uma mensagem do funcionário médico. Este era uma excelente pessoa e um médico muito hábil. Tinha estendido o certificado, mas em uma nota adicionada a este dizia: ‘Ao analisar o sangue da paciente, entretanto, não encontro sinais do diagnóstico que você sugere.’

“Meu amigo, incomodado pela discordância, tomou imediatamente uma amostra de sangue de seu paciente, e correu ao laboratório. A recontagem globular tinha mudado drasticamente, tal como o assinalava o outro médico. ‘Se eu não fosse uma dessas pessoas que controla meticulosamente todos os passados do processo de laboratório quando se trata de um doente meu, e se não tivesse tido o cuidado de controlar o sangue daquela doente em cada uma de suas visitas’, dizia meu amigo, ‘teria chegado à conclusão de que me tinha equivocado’ Mas teve que aceitar a diferença, e voltando para a paciente lhe perguntou: ‘Aconteceu algo importante em sua vida da última visita que me fez?’ ‘Sim’, replicou-lhe ela, ‘aconteceu algo. Fui capaz de perdoar a alguém contra quem experimentava um ressentimento atroz; e quando aconteceu isto comecei a sentir, repentinamente, que a partir desse momento podia dizer sim à vida’.” Sua atitude mental tinha mudado, e junto com ela tinha mudado até o estado de seu sangue.

Este homem, na história do evangelho, sabia que era um pecador. Estava seguro de que Deus era seu inimigo. Deus o tinha paralisado e adoecido como castigo pelas maldades que ele tinha feito. Mas quando Jesus lhe trouxe o perdão de parte de Deus, soube que suas relações com Deus tinham sido restabelecidas em bons termos, soube que Deus já não era seu inimigo, mas seu amigo, e portanto se curou.

Mas a forma desta cura, precisamente, é o que escandalizou aos escribas. Jesus se tinha atrevido a perdoar pecados; o perdoar pecados é prerrogativa de Deus; portanto, Jesus tinha ofendido a Deus. Jesus lhes responde colocando-se no mesmo plano em que eles o atacam. “Pois qual é mais fácil? Dizer: Estão perdoados os teus pecados, ou dizer: Levanta-te e anda?” Recordemos que estes escribas acreditavam firmemente que ninguém podia levantar-se e andar a menos que seus pecados tivessem sido perdoados previamente. Se Jesus podia fazer com que este homem se levantasse e andasse, estava oferecendo uma prova irrefutável de que seus pecados tinham sido perdoados, e portanto que Jesus era capaz de perdoar pecados. De maneira que Jesus demonstrou que era capaz de trazer o perdão à alma daquele homem, e a saúde a seu corpo. E segue sendo uma verdade universalmente válida, que ninguém pode estar fisicamente bem a menos que esteja bem espiritualmente, que a saúde do corpo e a paz com Deus vão sempre de mãos dadas.

Estudo sobre Mateus 9:9

Não havia ninguém que fosse um candidato tão improvável para o apostolado como Mateus. Mateus era o que nossa versão da Bíblia denomina um publicano. Os publicanos eram o que hoje chamaríamos coletores de impostos, e eram chamados publicanos porque tinham que ver com o dinheiro público e com os recursos públicos.

O problema do governo romano era desenhar um sistema mediante o qual cobrar os impostos do modo mais eficaz e barato possível.

Solucionaram-no vendendo ao melhor pastor o direito a cobrar os impostos em uma determinada área. Alguém comprava o direito a arrecadar os impostos em um determinado lugar; a partir desse momento era responsável, ante o governo romano, por uma soma anual. Tudo o que pudesse cobrar a mais, acima dessa soma, era sua comissão.

Evidentemente, este sistema se prestava a abusos. A pessoa não sabia quanto devia pagar, antes que existissem os periódicos e os serviços modernos de difusão de notícias; nem tinham o direito de apelar contra as exigências do publicano. O resultado era que a maioria dos publicanos chegavam a enriquecer-se grandemente, abusando de seu ofício em proveito de seus bolsos. Este sistema se prestou a tantos abusos que na Palestina, nos tempos de Jesus, tinha sido modificado substancialmente; mas ainda era necessário pagar impostos, e o novo sistema, ainda se prestava a abusos.

Havia três impostos principais que todos deviam pagar. O primeiro era o imposto sobre a terra, que obrigava a todo agricultor a pagar um décimo de sua colheita de cereais, e um quinto de sua fruta ou vinho, seja em dinheiro ou em espécie. Havia um imposto sobre os rendimentos, que obrigava a contribuir com um por cento dos ganhos. E havia um imposto de captação que consistia em uma soma fixa que deviam abonar anualmente os varões entre quatorze e sessenta e cinco anos, e as mulheres entre doze e sessenta e cinco anos de idade. Estes eram impostos estatais, fixos, que todos conheciam bem e mediante os quais o publicano dificilmente poderia tirar ganho pessoal.

Mas além destes três, havia vários outros impostos de distinto tipo. Os produtos importados ou exportados deviam pagar direitos que oscilavam entre 2,5% a 12,5%. Era preciso pagar um imposto ao viajar pelos estradas principais, ao cruzar pontes, ao entrar nos mercados, nas cidades e nos portos. Havia impostos pelos animais de trabalho e pelos veículos, segundo a quantidade de rodas ou de eixos que tivessem. Havia impostos às compras e às vendas.

Certos produtos e serviços eram monopólio do governo. Por exemplo, no Egito o governo controlava completamente o comércio de nitrato, cerveja e papiro.

Embora o antigo sistema de licitar os cargos de publicano tinha sido suspenso, muita gente seguia necessitando-se para arrecadar todos esses impostos. Em geral, as pessoas que cobravam os impostos eram naturais da região onde exerciam seu ofício. Com frequência se ofereciam voluntariamente para esse trabalho. Em geral, em cada região havia uma pessoa encarregada de cada um dos impostos, e muito frequentemente parte do dinheiro arrecadado ficava em seus bolsos.

Todo mundo odiava os publicanos. Estavam a serviço dos conquistadores de sua própria pátria e se enriqueciam às custas da desgraça de seus concidadãos. Na atualidade diríamos que eram "vende pátrias" ou "colaboracionistas". Eram pessoas reconhecidamente desonestas. Não somente exauriam a seus concidadãos, mas também, em geral, enganavam ao governo, e grande parte de seus lucros provinha do suborno ou o suborno de ricos que não queriam pagar os impostos a que estavam obrigados. Em todas partes os coletores de impostos são pessoas pouco gratas, mas entre os judeus eram duplamente odiados. Os judeus eram nacionalistas fanáticos. Mas sobretudo, o que provocava sua reação negativa era a convicção de que o único rei era Deus, e que portanto pagar impostos a um governante humano era infringir os direitos de Deus e insultar a Sua majestade.

A lei judia proibia a entrada dos publicanos na sinagoga. Eram incluídos na mesma categoria das coisas e dos animais impuros, e lhes eram aplicadas todas as disposições de Levítico 20:5; não podiam ser testemunhas ante a justiça; quando se enumeravam as pessoas indignas, sempre estavam juntos "ladrões, assassinos e publicanos".

Quando Jesus chamou Mateus, chamou a alguém a quem todos odiavam. Aqui temos um dos grandes exemplos do Novo Testamento de como Jesus era capaz de ver em um homem não o que era, mas o que podia chegar a ser. Ninguém jamais teve tal fé nas possibilidades da natureza humana como Jesus.

Cafarnaum pertencia ao território de Herodes Antipas, e muito provavelmente Mateus não era empregado diretamente dos romanos. Estava a serviço de Herodes. Cafarnaum era uma grande encruzilhada de rotas importantes. Em particular, atravessava por ela o grande caminho que unia o Egito e Damasco, a Rota do Mar. Por Cafarnaum ingressavam ou saíam do território de Herodes todas as mercadorias provenientes ou destinadas ao exterior. É muito provável que Mateus tenha sido oficial de alfândega, encarregado de sobrecarregar com os impostos locais todo o comércio de exportação e importação.

Não temos que pensar que esta fosse a primeira vez que Mateus se encontra com Jesus. Sem dúvida teria ouvido falar do jovem galileo que andava pregando uma mensagem maravilhosamente nova, que falava com uma autoridade tal como nunca se viu anteriormente, e que incluía entre seus amigos pessoas de quem qualquer religioso ortodoxo se apartou com repugnância. Sem dúvida Mateus o tivesse ouvido falar em alguma oportunidade, misturado entre a multidão, e as palavras de Jesus faziam estremecer seu coração. Possivelmente Mateus se perguntou interiormente se ainda era muito tarde para levantar voo em busca de um mundo novo, deixar atrás sua velha vida e sua vergonha, e começar de novo. E agora Jesus está frente a ele; Jesus o desafia. Mateus aceita o desafio de Jesus, levanta-se, deixa-o tudo, e o segue.

Devemos nos fixar no que Mateus perde e no que acha. Perde um bom emprego, mas encontra um destino glorioso. Perde independência econômica, mas ganha honra. Perde uma sólida segurança, mas ganha uma aventura tal como jamais se atreveu sequer a sonhar. É possível que se aceitamos o desafio de Jesus nos encontremos mais pobres em coisas materiais. Pode ser que devamos abandonar nossas ambições mundanas. Mas sem lugar a dúvida encontraremos uma paz, uma alegria e uma vida cheia de novos interesses, tal como nunca tínhamos conhecido antes. Em Jesus Cristo se encontra uma riqueza muito maior que qualquer riqueza deste mundo que se deva abandonar por amor a Ele.

Devemos nos fixar no que Mateus deixou e no que levou. Deixou os bancos de coletor de impostos; mas levou pelo menos uma coisa – sua pena. Aqui há um exemplo glorioso da maneira em que Jesus pode utilizar os dons de quem vai a Ele. É muito pouco provável que os outros onze apóstolos fossem muito hábeis no uso da pena. Os pescadores galileus não eram em geral pessoas instruídas, capazes de escrever ou sequer organizar um discurso. Mas Mateus possuía esta habilidade; e este homem, que por seu ofício costumava usar a pena, agora a usaria para compor o primeiro manual dos ditos de Jesus, indubitavelmente um dos livros mais importantes que o mundo já leu.

Quando Mateus abandonou os bancos de coletor de impostos, abandonou muito relativo ao material, mas espiritualmente se transformou em herdeiro de uma fortuna imensa.

Estudo sobre Mateus 9:10-13

Jesus não somente chamou Mateus para ser seu seguidor, mas sim chegou até sentar-se à mesa junto com homens e mulheres que eram como Mateus, publicanos e pecadores notórios. Aqui se expõe uma pergunta muito interessante: Onde teve lugar esta refeição de Jesus com os publicanos e pecadores? Somente Lucas diz, de maneira explícita, que a refeição teve lugar na casa de Mateus, ou Levi (cf. Mateus 9:10-13; Marcos 2:14-17; Lucas 5:27-32). Segundo o relato de Mateus e Marcos a refeição poderia ter sido na casa de Jesus, ou onde se alojava nesse momento. De ser assim, suas palavras são muito mais agudas. Jesus disse: "Não vim chamar justos, e sim pecadores ao arrependimento."

A palavra grega utilizada é kaláin, o termo técnico que aparece nos convites cursados para participar de uma festa ou em uma refeição. Na parábola do Grande Banquete (Mat. 22:1-10; Luc. 14:15-24), conforme recordaremos, os hóspedes convidados rechaçaram seu convite, e então se chamou os pobres, os aleijados e os cegos, tirando-os das ruas e caminhos onde mendigavam, e foram assentados à mesa do Rei. Pode ser que Jesus esteja dizendo: "Quando vocês fazem uma festa, convidam os ortodoxos mais estritos, piedosos, que se orgulham de sua virtude; quando eu faço uma festa, ao contrário, convido os que têm maior consciência de seu pecado e mais necessitam de Deus."

Seja como for, tendo ocorrido esta refeição na casa de Mateus ou na casa onde Jesus se hospedava, para os fariseus e os escribas ortodoxos a situação foi chocante em extremo. Em termos gerais o povo na Palestina se dividia em duas categorias: os ortodoxos, que observavam a Lei em seus mais mínimos detalhes e estipulações; e o povo em geral, que não prestava atenção às minúcias da Lei. Estes eram chamados o povo da terra e os ortodoxos foram proibido viajar junto com eles, comercializar com eles, dar algo ou receber algo deles, recebê-los como convidados ou ser convidados a suas casas. Ao juntar-se com estas pessoas, Jesus estava fazendo algo que nenhum religioso ortodoxo de sua época teria feito.

A defesa de Jesus foi de uma simplicidade exemplar. Disse apenas que ia onde a necessidade era maior. Não seria bom médico o que só visitasse as casas dos sãos; o lugar de um médico é junto aos doentes. Sua tarefa e sua glória é estar onde é necessário. Diógenes foi um dos grandes mestres da antiguidade grega. Nunca se cansou de comparar a vida decadente de Atenas, cidade em que passou a maior parte de sua vida, com a simplicidade e austeridade de Esparta. Alguém o interpelou um dia e lhe disse: "Se pensar que Esparta é tão maravilhosa e Atenas tão desprezível, por que não deixa Atenas e vai a Esparta?" A resposta do filósofo foi: "Não importa o que eu possa preferir, minha obrigação é ficar no lugar onde os homens mais me necessitam." Eram os pecadores que necessitavam de Jesus, e entre eles viveu Sua vida.

Quando Jesus disse: "Não vim chamar os justos, e sim pecadores", pronunciou palavras que devem entender-se corretamente. Não significam que haja pessoas tão boas e perfeitas que não necessitam nada do que Ele possa lhes oferecer, Menos ainda significam que Jesus não tenha estado interessado nas pessoas boas. Este dito de Jesus é algo assim como um epigrama, quer dizer, uma locução verbal altamente comprimida. O que Jesus quis dizer foi: "Não vim para convidar a pessoas tão satisfeitas consigo mesmas que estão convencidas de sua bondade e que acreditam não necessitar a ajuda de ninguém; vim para convidar aos que são conscientes de seus pecados e sabem desesperadamente que necessitam um salvador." Quis dizer: "Somente os que sabem até que ponto precisam de Mim são capazes de aceitar o Meu convite."

Os escribas e os fariseus dos tempos de Jesus interpretavam a religião de uma maneira que ainda continua sendo comum entre muitas pessoas.

(1) Estavam mais preocupados com a preservação de sua própria santidade que por ajudar a outros em seu pecado. Eram como médicos que se negam a visitar os doentes por temor ao contágio. Apartavam-se asquerosos do pecador; não queriam ter nada a ver com gente de tal categoria. Sua religião era essencialmente egoísta; procuravam mais sua própria salvação que a salvação de outros, e tinham esquecido que essa era a maneira mais segura de .perder-se eles.

(2) Ocupavam-se mais em criticar que em estimular a outros. Estavam mais dispostos a condenar as faltas de outros que a ajudá-los a superá-las. Quando um médico deve examinar um doente afetado de algum mal asqueroso, capaz de transtornar o estômago de qualquer um, se for um bom profissional não experimentará asco, e sim o desejo de ajudar. Nosso primeiro instinto não deve ser jamais condenar o pecador, mas procurar a melhor maneira de ajudá-lo.

(3) Praticavam uma forma de bondade cujo resultado era a condenação em vez do perdão ou da simpatia. Eram capazes de deixar a um homem na sarjeta em vez de estirar a mão para ajudá-lo a sair dela. Eram como médicos muito interessados em reconhecer e diagnosticar a enfermidade de seus pacientes, mas sem o menor interesse em curá-la. Ocupavam-se mais em olhar depreciativamente a outros, em vez de fazê-lo com simpatia e amor.

(4) Praticavam uma religião que consistia mais em uma ortodoxia exterior que na ajuda prática ao próximo. Jesus estimava muito a afirmação de Oséias 6:6 de que Deus prefere a misericórdia antes que o sacrifício. Citou esta passagem mais de uma vez (veja-se Mateus 12:7). O homem "religioso" pode realizar todos os ritos da piedade ortodoxa, mas se nunca estirou a mão para ajudar ao pecador ou ao que tinha necessidade, não é autenticamente religioso.

Estudo sobre Mateus 9:14-15

Para o judeu as três grandes obrigações da vida religiosa eram a oração, o jejum e a esmola. Já descrevemos em detalhe as formas do jejum judeu, ao nos ocupar de Mateus 6:16-18.

A. H. McNeile sugere que este incidente deve ter ocorrido quando, ao não ter chegado as esperadas chuvas de outono, ordenou-se um jejum público.

Quando se perguntou a Jesus por que Ele e seus discípulos não jejuavam, respondeu com uma vívida imagem. Nossas versões falam de "os convidados para o casamento" (RA) ou "os filhos das bodas" (RC).

Entre os judeus a celebração de um casamento era uma ocasião de festejos muito especiais. Uma característica que a diferenciava de nossas bodas era que o casal de recém casados não saía em viagem de "lua de mel". Durante uma semana inteira depois da cerimônia a casa dos recém casados ficava aberta aos seus amigos e parentes, que participavam com eles de ininterruptas celebrações. O noivo e a noiva, durante estes dias, eram tratados, e até eram chamados, como rei e rainha. Seus amigos mais íntimos, particularmente, não se separavam deles, e participavam da alegria e da celebração. Estes amigos mais íntimos eram chamados "os filhos da quarto nupcial", que é literalmente o que diz o original. Estas ocasiões eram motivo de prazer, celebração e alegria tais como muito dificilmente o judeu comum vivesse em todo o resto de sua vida.

Jesus se compara ao noivo, e seus discípulos aos amigos íntimos do casal. Como poderia um grupo tal mostrar-se triste ou de luto? Não era o momento mais apropriado para jejuar, mas sim correspondia alegrar-se como nunca se alegraria na vida.

Há três coisas muito importantes nesta passagem.

(1) Diz-nos que estar com Jesus é uma experiência prazerosa; diz-nos que na presença de Jesus se descobre toda a excitante efervescência da vida; que um cristianismo arrasado pela tristeza é uma impossibilidade. O homem que anda com Cristo fica radiante de alegria.

(2) Mas também nos diz que nenhuma alegria dura para sempre. Para os discípulos do João tinha chegado, já, o momento da tristeza, porque João já estava preso. Para os discípulos de Jesus também chegaria o momento de tristeza. Um dos fatos inevitáveis da vida é que toda alegria chega a seu fim.

Epicteto costumava dizer, com toda a seriedade que o caracterizava: "Quando você estiver beijando a seu filho deve dizer a si mesmo: 'Algum dia ele morrerá'."

É por isso que devemos conhecer a Deus e a Jesus Cristo. Somente Jesus é o mesmo hoje, ontem e pelos séculos. Só Deus permanece, em meio das distintas alternativas e circunstâncias da vida. Até as relações humanas mais tenras algum dia chegam a seu fim; somente a alegria celestial dura por sempre jamais, e se o temos em nossos corações, nada nem ninguém nos poderá tirar isso.

(3) Mas aqui também há um desafio. É possível que naquele momento os discípulos não o percebessem, mas Jesus lhes estava dizendo: "Vocês experimentaram a alegria que significa seguir-me; podem vocês passar também pelos problemas, vicissitudes e sofrimentos da cruz?" O caminho cristão oferece alegria; mas também traz sangue, suor e lágrimas, que não podem eliminar a alegria, mas, não obstante, são tremendamente reais e devem ser enfrentados. Jesus diz, pois: "Estão dispostos para ambas as coisas – a alegria cristão e a cruz cristã?"

(4) Nesta afirmação está encerrada a coragem de Jesus. Ele nunca Se fez ilusões; sabia que ao final de seu caminho O aguardava a cruz. Nesta passagem se levanta o véu e temos uma visão dos pensamentos mais íntimos de Jesus. Sabia que, para Ele, o caminho da vida era um caminho para a cruz, e entretanto não se apartou nem um passo da senda que tinha assinalado. Presenciamos o espetáculo da coragem de um homem que conhecia o custo da obediência a Deus e que, entretanto, segue adiante com seu propósito de lhe ser obediente.

Estudo sobre Mateus 9:16-17

Jesus tinha perfeita consciência de que vinha aos homens com ideias novas, com uma nova concepção da verdade, e sabia quão difícil é introduzir uma ideia nova na mente dos homens. Por isso usou duas imagens que qualquer judeu de seu tempo podia compreender.

(1) "Ninguém", diz, "toma uma parte de pano novo, que ainda não se encolheu, para remendar um vestido velho. Se o fizer, quando o vestido se molha o pano novo encolhe, puxa o tecido velho e o rasga, e a ruptura é, então, maior do que era antes." Os judeus aderiam apaixonadamente às coisas tal qual eram. A Lei era para eles a palavra de Deus última e definitiva. Acrescentar ou tirar uma só palavra, seria considerado um pecado mortal. O objetivo reconhecido dos escribas era "construir uma cerca ao redor da Lei". Para eles uma ideia nova não era tanto um engano como um pecado. Esse espírito não desapareceu totalmente.

Com frequência se em uma Igreja se sugere uma nova ideia, uma inovação no método de trabalho ou alguma mudança, surge em seguida a objeção: "Isso nunca foi feito".

Em certa oportunidade ouvi uma conversação entre dois teólogos. Um deles era um homem jovem, intensamente interessado nas contribuições dos novos pensadores. O outro era velho e professava uma ortodoxia rígida e convencional. O teólogo de mais idade ouvia o jovem com certo sotaque de tolerante desprezo, até que finalmente fechou a conversação dizendo: "Mas o velho sempre é o melhor."

Ao longo de toda sua história a Igreja sempre se apegou ao velho. O que Jesus diz nesta passagem é que chegam momentos em que é uma tolice remendar o velho, porque a única solução adequada é eliminá-lo e começar de novo. Há formas de governo eclesiástico, formas de culto ou liturgia, palavras mediante as que se expressa a fé, que muito amiúde procuramos remendar e adaptar às novas realidades, para atualizá-las. Queremos pôr emplastros nelas. Ninguém acredita que se possa abandonar sem grande cuidado, consideração e até saudade, o que durante séculos serviu, por ter demonstrado com o correr dos anos seu valor intrínseco e ter servido como alimento e consolo para as muitas gerações que puseram sua confiança nisso; mas o certo é que vivemos em um universo que cresce e se expande, e sempre chega um momento em que os remendos são inúteis, e quando um homem, ou uma igreja, devem aceitar a aventura do novo ou retirar-se ao remanso do tempo onde se adora não a Deus, e sim ao próprio passado.

(2) Ninguém, diz Jesus, põe vinho novo em odres velhos. Na antiguidade o vinho se guardava em odres de couro e não em garrafas ou barris de madeira, como o fazemos agora. Quando o vinho ficava no couro, ainda não tinha terminado de fermentar. Os gases que produz o processo da fermentação exerciam pressão sobre o couro. Se este possuía certa elasticidade não acontecia nada, porque cedia à pressão. Mas se o couro era velho e tinha perdido sua elasticidade natural, e se guardava nele vinho novo, o couro velho ao não ceder à pressão dos gases, inevitavelmente arrebentava.

Para expressá-lo em termos mais modernos: Nossas mentes devem ser suficientemente elásticas para poder receber e conter novas ideias. A história do progresso é a história da superação dos preconceitos e da abertura das mentes fechadas. Todas as ideias novas tiveram que lutar contra a oposição instintiva da mente humana. O automóvel, o trem e a aviação foram vistos com suspeita no princípio.

Simpson teve que lutar para introduzir o clorofórmio, e Lister teve que lutar para introduzir os anti-sépticos na prática médica e cirúrgica. Copérnico foi obrigado a retratar-se de sua afirmação que a Terra dava volta ao redor do Sol e não o Sol ao redor da Terra. Até Jonas Hanway, o homem que introduziu o guarda-chuva na Inglaterra, teve que sofrer a hostilidade dos transeuntes quando saiu pela primeira vez à rua com esse artefato, recebendo insultos e até objetos que jogavam nele. Em nossos dias, a automatização é considerada com suspicácia e resistência por muitas pessoas, porque é algo novo.

Este desagrado ante o novo penetra todas as esferas da vida.

Norman Marlow é um especialista em ferrovias que realizou muitas viagens nas locomotivas de distintas ferrovias. Em seu livro Footplate and Signal Cabin conta-nos de uma viagem que fez muito pouco tempo depois da fusão das ferrovias da Inglaterra. Como resultado da fusão as locomotivas que foram usadas apenas em algumas linhas passaram a usar-se em outras, e os maquinistas tiveram que acostumar-se a dirigir distintos tipos de marcas de locomotivas. Nessa oportunidade viajava entre Manchester e Penzance. A locomotiva era da classe "Jubilee 4-6-0". O maquinista costumava dirigir locomotivas da classe "Castle", ao ter sido empregado durante muitos anos pela Great Western Railway.

"Todo o tempo não fez mais que falar com uma eloquência rigorosa dos defeitos da máquina que estava dirigindo, comparando-a com as locomotivas que costumava dirigir. Negava-se a usar a técnica necessária para a nova máquina, embora tinha recebido toda a instrução necessária e a conhecia perfeitamente bem. Dirigia a Jubilee como se tivesse sido a Castle e se queixava todo o tempo porque não conseguia levantar o trem acima dos oitenta quilômetros por hora. Estava habituada com a Castle, e nenhuma outra locomotiva o servia. Quando o relevou um maquinista que estava perfeitamente preparado para utilizar a técnica que essa nova máquina requeria, imediatamente estávamos viajando a 120 quilômetros por hora. Até no manejo das máquinas os homens experimentam resistências diante do novo."

Dentro da Igreja essa resistência frente o novo é crônica, e o intento de esvaziar as coisas novas em moldes velhos é virtualmente universal. Procuramos esvaziar as atividades de uma congregação moderna em um edifício velho que nunca teve como objetivo servir a tais propósitos. Procuramos esvaziar a verdade dos novos descobrimentos em moldes dogmáticos que respondem à metafísica grega. Queremos esvaziar a nova instrução em uma linguagem caduca que não pode expressá-la. Lemos a Palavra de Deus aos homens e mulheres do século XX em uma linguagem clássica, e procuramos apresentar perante Deus, em oração, nossas necessidades e de nossos contemporâneos em uma linguagem devocional que tem mais de quatrocentos anos de idade.

Provavelmente nos faria muito bem recordar que todo ser vivo que deixa de crescer e desenvolver-se começou a morrer. Possivelmente devamos implorar a Deus que nos livre de nossas mentes fechadas e nos dê mentes abertas. Vivemos em uma era de mudanças rápidas e tremendas.

O Visconde Samuel, da Inglaterra, que nasceu em 1870, começa sua autobiografia descrevendo o Londres de sua infância: "Não tínhamos automóveis, nem ônibus, nem táxis, nem trens subterrâneos ou metrô; não havia bicicletas, exceto aquelas com uma roda grande e outra pequena; não havia luz elétrica, nem telefone, nem cinema, nem rádio."

Isso foi há apenas noventa anos. Vivemos em um mundo que muda, expande-se e cresce. A advertência de Jesus vale para a Igreja, que não pode permitir-se ser a única instituição que siga vivendo no passado.

Estudo sobre Mateus 9:18-19, 23-26

Antes de nos ocupar com esta passagem em seus detalhes, devemos revisá-la em sua totalidade; porque aqui há algo maravilhoso.

Esta passagem contém três histórias de milagres, a cura da filha de Jairo (vs. 18, 19, 23-26, a cura da mulher que tinha um fluxo de sangue (vs. 20-22) e a cura de dois cegos (vs. 27-31). Estas três histórias têm algo em comum. Vejamos uma por uma.

(1) Sem dúvida o presidente da sinagoga acudiu a Jesus depois de ter provado todos os outros recursos a seu alcance. Como presidente da sinagoga que era, deve ser considerado um dos pilares humanos da ortodoxia judia. Era um daqueles que desprezavam a Jesus e sem dúvida teria estado contente se o tivesse eliminado. Antes de acudir a Jesus deve ter provado toda classe de médicos e tratamentos; somente como um último recurso, depois que tudo tinha falhado, foi a Jesus. Quer dizer, este homem principal acudiu a Jesus movido por uma motivação espúria. Não foi porque seu coração estivesse inflamado de amor para com Ele; foi porque já tinha provado tudo e não ficava outro a quem ir.

O poeta Faber põe nos lábios de Deus as seguintes palavras com respeito a um filho extraviado:

"Se a bondade não o trouxer, ao menos a fadiga pode jogá-lo a meu peito."

Este homem acudiu a Jesus simplesmente porque o desespero o impulsionou a fazê-lo.

(2) A mulher com a hemorragia se aproximou de Jesus por trás dEle, e tocou na barra da túnica. Suponhamos que estivéssemos lendo esta história com uma mente crítica e imparcial, o que diríamos que manifestou esta mulher? Indubitavelmente em seu coração não havia outra coisa que terminante superstição. Tocar na fímbria do manto de Jesus é como procurar a saúde no contato com as relíquias ou os lenços que usaram as santos. Esta mulher acudiu a Jesus com o que chamaríamos uma fé muito inadequada. Se virmos toda a história com olhos críticos, não encontraríamos muito mais que uma simples superstição, e muito pouco de autêntica fé.

(3) Os dois cegos se aproximaram de Jesus gritando com grande voz: "Tem compaixão de nós, Filho de Davi!". Filho do Davi não era um título que Jesus desejasse. Era a classe de título que teria usado um judeu nacionalista. Havia uma boa quantidade de judeus que esperavam o advento de um grande líder e general, descendente direto de Davi, que os conduzisse a conquistar um triunfo político e militar contra os romanos, seus senhores no momento. Esta é a idéia que respalda o título de Filho de Davi. De modo que estes cegos acudiram a Jesus com uma idéia muito inadequada de quem era o Mestre. Não viam nEle mais que o herói conquistador da linha de Davi.

Estes três relatos nos confrontam com algo muito inesperado. Jairo foi a Jesus movido por uma motivação espúria; a mulher foi a Jesus com uma fé inadequada; os cegos foram a Jesus com uma idéia equivocada de quem era ele, ou, se queremos dizê-lo deste modo, com uma teologia inadequada, E entretanto, nos três casos, acharam seu poder e seu amor aguardando para ajudá-los. Aqui se nos revela algo extraordinário. Não importa como vamos a Jesus, basta chegarmos até Ele. Não importa que nossa aproximação seja inadequada ou imperfeita. Seu amor e seus braços estão abertos para nos receber.

Esta é uma dupla lição. Significa, por um lado, que não esperemos, para pedir a ajuda de Jesus, até que nossas motivações, nossa fé ou nossa teologia sejam perfeitas; podemos ir a Ele tais quais somos. E significa, em segundo lugar, que não temos direito de criticar aqueles cujas motivações nos sejam suspeitas, cuja fé pomos em tela de juízo, ou cuja teologia, em nossa opinião, é incorreta. O que importa não é como vamos a Jesus; o importante é que vamos, de uma ou outra maneira, porque Ele está disposto a nos aceitar tal como somos e a nos converter no que deveríamos ser.

Mateus narra esta história com muita mais economia de palavras que os outros evangelistas. Se desejamos obter alguns dos detalhes que faltam aqui, devemos buscá-los em Marcos 5:21-43 e Lucas 8:40-56. É ali onde descobrimos que o nome do "chefe" era Jairo, e que era presidente da sinagoga (Mar. 5:22; Luc. 8:41).

O presidente da sinagoga era uma pessoa muito importante. Era eleito entre os anciões de cada congregação judia. Sua responsabilidade não era ensinar, nem dirigir durante as reuniões; tinha a seu cargo "vigiar a ordem durante as reuniões da sinagoga, e fiscalizar os interesses da sinagoga em geral". Ele designava aos que deviam encarregar-se das leituras durante as reuniões e aos que dirigiriam a oração. Também convidava os pregadores. Sua obrigação era vigiar que não acontecesse nada fora de lugar na sinagoga e a seu cargo estava o cuidado dos edifícios da mesma. Toda a administração dos assuntos práticos da sinagoga estava em suas mãos.

É evidente que um homem assim somente acudiria a Jesus como último recurso. O mais provável é que fosse um judeu ortodoxo estrito, dos que consideravam que o novo profeta era um herege perigoso; e somente quando todo o resto tinha fracassado se volta, desesperado, a Jesus. Jesus bem poderia lhe dizer: "Quando tudo ia bem, a única coisa que você queria era me matar; agora que você tem problemas, você precisa buscar minha ajuda." Poderia ter-se negado a ajudar a alguém que ia a Ele dessa maneira. Mas Jesus não experimentava ressentimento algum; havia alguém que o necessitava, e a única coisa que Jesus queria nesse momento era ajudar. Na mente de Jesus não havia lugar para o orgulho ofendido ou o espírito de desforra e vingança.

Então, Jesus vai, com este presidente da sinagoga, para sua casa. Ali encontrou um pandemônio. Para os judeus a obrigação de chorar os mortos era muito importante, "quem não chora a morte de um homem prudente", dizia um provérbio, "merece ser enterrado vivo". Havia três costumes de luto que caracterizavam a casa judia em que tinha morrido algum de seus membros.

Em primeiro lugar, os parentes rasgavam sua roupa. Trinta e nove regras estabeleciam tradicionalmente como devia efetuar o rasgo. Devia fazê-lo estando de pé. Os rasgões deviam ser profundos, de tal maneira que pudesse ver-se a pele. O pai e a mãe do morto deviam rasgar a roupa exatamente no lugar que cobria o coração; os outros deviam fazê-lo sobre o lado direito. O rasgão devia ser o suficientemente grande como para que coubesse o punho. Durante sete dias a roupa devia ser usada rasgada; durante mais trinta dias podia ser alinhavada mas não remendada cuidadosamente, para que se pudesse ver o rasgão, embora abafado. Teria sido impudico que as mulheres rasgassem sua roupa de tal maneira que seus seios ficassem descobertos, e por isso se estabelecia que as mulheres deviam rasgar a túnica interior quando estavam em particular. Depois de fazê-lo, deviam tirá-la e pô-la ao avesso, a parte da frente para trás. Em público só podia ver-se, desse modo o rasgão da túnica exterior.

Além disso vinha a lamentação pelo morto. Na casa de luto se mantinha um pranto contínuo. Esses lamentos estavam a cargo de "carpideiras" profissionais. Ainda existem no Oriente.

E em seu livro The Land and the Book, W. M. Thomson as descreve:

"Em toda cidade, e até nos pequenos povoados há mulheres extremamente hábeis neste tipo de mister. Quando se precisa delas se manda chamá-las urgentemente. A cada novo grupo de pessoas que devem dar os pêsames, estas mulheres ficam lamentando, chorando e gritando, de maneira tal que fica fácil aos recém chegados unir suas lágrimas e lamentos aos dos parentes. Conhecem a fundo a história pessoal de todo o mundo, e a cada pessoa que entra começam a chorar, recordando os nomes dos parentes defuntos do visitante, com grande quantidade de lamentações improvisadas, e tocando desse modo as cordas mais sensíveis de cada um deles. Desse modo cada um chora os seus próprios mortos, e as lágrimas, que de outro modo seriam difíceis, ou até impossíveis, produzem-se de modo natural e espontâneo."

Naquele dia os alaridos e prantos das choradeiras profissionais devem ter cheio a casa do Jairo.
E, por último, vinham os flautistas. A música de flauta se relacionava de maneira especial com a morte. O Talmud diz:

"O marido está obrigado a enterrar a sua esposa, quando morre, e a fazer lamentação e luto por ela, segundo o costume de todos os países. Até o mais pobre dos judeus não pode menos que contratar dois flautistas e uma carpideira; mas, se for rico, tudo se fará segundo suas possibilidades."

Até em Roma os flautistas eram parte dos funerais. Estiveram presentes, por exemplo, durante os funerais do imperador Cláudio, e Sêneca, diz que tal era a estridência do ruído que o próprio Cláudio, embora estando morto, deve tê-los escutado. Tão insistente e tão sentimental era o som das flautas fúnebres, que a lei romana tinha limitado a dez o número dos flautistas que se podiam contratar para um funeral.

Podemos imaginar, pois, a cena que se esteve desenvolvendo na base do chefe da sinagoga. Os parentes tinham suas roupas rasgadas, as choradeiras profissionais enchiam o lugar com seus lamentos e uivos pré-fabricados, as flautas produziam seu agudo gemido. A casa deve ter sido um verdadeiro pandemônio de luto oriental.

Nessa atmosfera excitada e histérica penetrou Jesus. Com autoridade, mandou todos saírem. Sua voz tranquila disse que a moça não estava morta, mas que dormia, e todos riram dele. Este é um toque estranhamente humano. Aqueles homens e mulheres estavam desfrutando tanto de seu luto que rechaçavam até a Palavra de esperança. É muito provável que quando Jesus disse que a moça estava dormindo, tenha querido dizer exatamente isso. Em grego, como em português, era costume dizer que os mortos "dormiam".

De fato, a palavra cemitério provém do grego koimenterion, que significa lugar onde se dorme.

Há duas palavras gregas que querem dizer dormir. Uma delas, kolmaszái significa tanto dormir como estar morto. A outra, kazóidain, em geral significa dormir, e somente em algumas citações muito excepcionais aparece com o significado de "dormir o sono da morte". É esta segunda palavra a que se utiliza aqui. No Oriente o coma cataléptico não é pouco comum. O enterro, em general, se efetua muito pouco tempo depois da morte, por razões climáticas. Tristram escreve: "O enterro em geral se celebra no mesmo dia da morte, ao anoitecer, ou durante a noite, se o defunto tiver vivido até depois do pôr-do-sol."

Dada a frequência da catalepsia, e a rapidez com que se enterrava os mortos, com muita frequência, em realidade se enterravam pessoas vivas, como o demonstra a evidência das tumbas. É bem possível que aqui não tenhamos tanto um exemplo de cura divina como de diagnóstico divino; neste caso Jesus salvou essa pobre menina de uma morte terrível. O certo é que, sem dúvida alguma, nesse dia, Jesus salvou a uma menina judia das garras da morte.

Estudo sobre Mateus 9:20-22

Do ponto de vista judeu, esta mulher não podia sofrer de enfermidade mais humilhante e terrível que uma hemorragia. Era um mal bastante comum na Palestina. O Talmude recomenda não menos de onze formas de curá-la. Algumas destas formas eram tônicos e adstringentes que provavelmente sortissem efeito. Outras eram simples superstições. Uma das curas que o Talmude recomenda, por exemplo, era levar as cinzas de um ovo de avestruz em uma bolsa de linho durante o verão, e em uma bolsa de algodão no inverno; outra consistia em conseguir e levar sempre com um grão de milho branco o que se encontrou nos excrementos de uma burra. Quando Marcos conta esta história, diz que esta mulher tinha provado todas as curas, que tinha consultado a todos os médicos que estavam a seu alcance, e que cada vez estava pior, em vez de melhorar (Marcos 5:26).

O horror desta enfermidade era que quem a sofria devia ser considerado ritualmente impuro. Conforme o estabelecia a Lei no Levítico 15:25-27, toda mulher que tivesse "fluxo de sangue" (incluindo o fluxo menstrual) era impura e não somente ela, mas também todas as coisas ou pessoas que tocasse enquanto durasse a hemorragia. Ficava totalmente marginalizada da sociedade humana normal, e também do culto divino. A mulher que se aproximou de Jesus não poderia sequer mesclar-se com a multidão, porque, ao assim fazer e eles soubessem, ela teria tornado impuros a todos os que tocasse. Não é de maravilhar-se, portanto, que esta mulher estivesse desesperadamente ansiosa por provar algo que pudesse libertá-la de sua humilhante enfermidade e com ela de sua vida de isolamento e humilhação.

De modo que se aproximou até Jesus, sem ser vista, e tocou o bordo de sua túnica. Este bordo, no caso da túnica de Jesus, deve ter sido o zizith, quatro borlas de linho azul que todo varão judeu devia levar em sua túnica, segundo a disposição da Lei em Números 15:37-41 e Deuteronômio 22:12.

Mateus volta a referir-se a esta parte do vestido em 14:36 e 23:5. Consistiam em quatro fios de linho azul que sucediam as pontas do manto, e ao encontrar-se entreteciam em uma borla. Um destes fios devia ser mais longo que os demais; fazia-se com que desse sete voltas ao redor dos outros fios e depois era atado com um nó duplo; o procedimento voltava a repetir-se depois de ter dado outras oito voltas, outras onze voltas e outras treze voltas. Os fios e os nós simbolizavam os cinco livros da lei. Esta franja tinha um duplo propósito. Por um lado, identificava os membros do povo judeu. Por outro lado, cada vez que um judeu tirava ou colocava a roupa, a borla e as franjas o lembravam que pertencia a Deus. Muito tempo depois, quando em todos os lugares do mundo os judeus eram perseguidos, este adorno se usava na roupa interior. Hoje aparecem no manto de oração que os judeus ortodoxos põem sobre os ombros e na cabeça toda vez que vão orar. O que esta mulher tocou, pois, foram as franjas do manto de Jesus.

Quando tocou essa parte da vestimenta de Jesus foi como se o tempo se detivesse. Devemos imaginar como se estivéssemos vendo um filme e repentinamente este se detém e ficamos olhando uma única fotografia, fixa. O mais extraordinário e referente desta cena, é que instantaneamente Jesus se deteve em meio da multidão, e foi como se nesse momento a única coisa que houvesse no mundo fosse essa mulher e sua necessidade. Não se tratava de uma pobre mulher perdida na multidão. Era alguém a quem Jesus se entrega por inteiro. Para Jesus nunca estamos perdidos entre a multidão, porque Jesus é como Deus.

W. B. Yeats escreveu em certa oportunidade, em um de seus momentos de beleza mística: "O amor de Deus é infinito para cada alma humana porque cada alma humana é única e nenhum outro pode satisfazer essa mesma necessidade divina."

Deus se entrega por inteiro a cada ser humano individual. O mundo não é assim. No mundo se divide as pessoas entre as que são importantes e as que não o são.

Em Night to Remember, Walter Lord conta com luxo de detalhes a história do afundamento do Titanic numa noite de abril de 1912. Quando aquele transatlântico recém saído dos estaleiros, que se tinha anunciado como "o navio insubmersível", chocou-se contra um iceberg no Atlântico Norte, morreram muitas pessoas.

Depois da tragédia e quando se conheceram as listas das vitimas, um periódico americano, The American, dedicou um de seus artigos de primeira página a destacar a morte, no afundamento, de John Jacob Astor, o milionário. Quase no final desse artigo, como por acaso, dizia-se que junto com ele tinham morrido outras mil e oitocentas pessoas. A única coisa que importava, a única coisa que tinha valor como notícia, era o milionário. Os outros 1.800 não importavam.

Os homens podem ser assim, mas não ocorre o mesmo com Deus. Bain, o psicólogo, descreve a pessoa sensível como alguém dotado de "uma ternura volumosa" No sentido mais alto e melhor possível, Deus tem essa "ternura volumosa".

James Agathe disse, referindo-se ao G. K. Chesterton: "Diferente de outros pensadores, Chesterton compreendia a seus semelhantes: conhecia de perto tanto as tristezas de um corredor de cavalos, como as preocupações de um juiz. Chesterton, muito mais que qualquer outro homem que eu tenha conhecido, tinha o dom da compreensão. Era capaz de oferecer toda sua atenção a um engraxate. Possuía essa generosidade que os homens denominam bondade, e que converte a todos os homens em próximos" Este é o reflexo desse amor de Deus graças ao qual ninguém está perdido na multidão.

É muito importante que recordemos tudo isto em uma época e um dia em que o indivíduo tende a perder-se na massa popular. Os seres humanos tendem a converter-se em números de um serviço de assistência médica social; tendem a converter-se em membros de grupos, associações, sindicatos e uniões onde até perdem o direito de agir como indivíduos.

W. B. Yeats disse com respeito ao Augustus John, o famoso retratista: "Interessava-se sobremaneira pela rebelião contra tudo o que faz com que um homem seja igual a outro."

Para Deus um homem nunca é igual a outro: cada um é um de seus filhos a quem conhece pessoalmente e todo o amor e o poder do pai estão ao seu dispor. Para Jesus esta mulher não era um rosto a mais na multidão, quando ela necessitou dEle. Ela foi a única coisa que lhe interessou. Jesus age da mesma maneira com cada um de nós.

Estudo sobre Mateus 9:27-31

A cegueira era uma doença tragicamente comum na Palestina. Em parte se devia ao extraordinário brilho do sol naquela região, que danificava os olhos expostos a seu resplendor sem proteção alguma, e em parte porque não se conhecia, naquele tempo, a importância da limpeza e a higiene. Verdadeiras nuvens de moscas transmitiam infecções que produziam a perda da vista.

O nome com que estes dois cegos se dirigiram a Jesus foi Filho de Davi. Quando estudamos comparativamente as circunstâncias em que Jesus é chamado deste modo, damo-nos conta de que quase sempre o usam pessoas que conheciam Jesus como se fosse de longe, vale dizer, que não eram íntimos deles nem membros do grupo de seus seguidores (Mateus 15:22, 20:30, 31; Marcos 10:47, 12:35, 36, 37).

O termo Filho do Davi descreve a concepção popular do Messias. Durante gerações e séculos os judeus tinham esperado um descendente de Davi, um caudilho e comandante que não somente restaurasse a sua liberdade, mas sim os levasse, como povo, ao poder e à glória, e à conquista do mundo inteiro. Era deste modo que os cegos concebiam a Jesus; viam nele o operador de maravilhas que conduziria a seu povo à vitória, à liberação e à conquista. Acudiram a Jesus com uma ideia muito errada de quem e o que era, e assim mesmo Ele os curou. A forma como Jesus trata a estes dois homens é muito ilustrativa.
(1) Evidentemente, não respondeu em seguida a seus gritos. Jesus queria estar seguro de que eram sinceros e ansiavam realmente o que Ele podia lhes dar. Era possível que só estivessem repetindo o que tinham ouvido outros dizerem, e que logo que Jesus tivesse passado se esquecessem totalmente do incidente. Queria estar seguro de que seu pedido era genuíno e de que tinham uma profunda consciência de sua necessidade. Depois de tudo, a condição de mendigo tinha suas vantagens; o mendigo estava livre de todas as responsabilidades do trabalho e de ter que ganhar a vida; há vantagens das quais só desfruta o inválido. De fato, há pessoas que não desejam que suas cadeias sejam quebradas.

W. B. Yeats, referindo-se a Lionel Johnson, o grande poeta e erudito, que era alcoólico, diz que ele mesmo dizia experimentar "um anseio que fazia clamar a cada átomo de seu corpo". Mas quando lhe sugeriam que se deixasse curar, para que essa ânsia o abandonasse, dizia, terminantemente: "Não quero me curar." Não são poucas as pessoas que no mais íntimo estão muito satisfeitas com suas fraquezas; e há muitos que, se fossem honestos, deveriam reconhecer que não querem deixar seus pecados. Jesus devia assegurar-se, em primeiro lugar, de que esses dois homens estavam verdadeiramente desejosos de receber a cura que Ele podia lhes dar.

(2) É muito interessante notar que Jesus de fato, obriga a estes dois homens que o vejam em particular. Ao Jesus não responder a seus gritos na rua, eles se vêem forçados a buscá-lo quando já tinha entrado em sua casa. Uma das leis do mundo espiritual é que, mais cedo ou mais tarde, todo ser humano deve confrontar-se com Jesus a sós. É fácil decidir-se a favor de Jesus na avassaladora emoção de uma grande reunião pública, ou como parte de um grupo pequeno carregado de energia espiritual. Mas depois da reunião multitudinária o indivíduo deve voltar para sua casa e estar a sós. Depois da união fraternal o indivíduo deve retornar à solidão essencial de cada alma humana. E o que verdadeiramente importa não é o que se faz em meio da multidão, apoiado por outros, e sim na solidão total da alma confrontada com Cristo. Jesus obrigou a estes homens a confrontar-se com Ele a sós.

(3) Jesus fez apenas uma pergunta a estes dois cegos: "Acreditam vocês que eu sou capaz de fazer isto?" A única coisa essencial para que aconteça um milagre é a fé. Não há nada de misterioso ou de teológico nesta afirmação. Nenhum médico pode curar um doente que vai a Ele tendo perdido toda esperança. Nenhum remédio poderá produzir melhoria alguma se quem o deve tomar pensa que daria o mesmo se tomasse água. O caminho para o milagre é colocar a própria vida totalmente nas mãos de Jesus Cristo e dizer a Ele: "Eu sei que podes me transformar no que eu deveria ser."

Estudo sobre Mateus 9:32-34

Poucas passagens mostram de maneira tão clara como esta a impossibilidade de uma atitude neutra para com Jesus Cristo. Temos aqui o quadro de duas formas de reagir frente a Jesus. A atitude da multidão era de surpresa e admiração. A atitude dos fariseus era de violento ódio. Segue sendo certo que o que o olho vê depende do que o coração sente. Os sentimentos que se aninham no coração humano podem colorir tudo o que seus olhos vêem.

A multidão via a Jesus maravilhada porque estava composta por pessoas muito simples, com um urgente sentido de sua necessidade; e também viam que em Jesus sua necessidade podia ser satisfeita da maneira mais extraordinária. Jesus sempre parecerá um ser extraordinário ao homem que é consciente de sua necessidade; e quanto mais profunda for essa consciência da própria necessidade, mais maravilhoso parecerá Jesus.

Os fariseus viam a Jesus como um aliado de todos os poderes do mal. Não negavam seus poderes maravilhosos, mas os atribuíam ao fato de que, segundo eles, estava em aliança com o príncipe dos demônios. E este veredicto dos fariseus se devia a certas atitudes mentais próprias dos homens de seu tipo.

(1) Estavam muito empedernidos em sua maneira de ser para aceitar a mudança. Como já vimos, para eles não se podia acrescentar nem tirar uma só palavra da Lei. Para eles tudo o que tinha importância pertencia ao passado. Para eles, mudar uma tradição, ou uma convenção, era um pecado mortal. Tudo o que era novo estava mal. E quando apareceu Jesus com uma nova interpretação do significado da fé, odiaram-no como tinham odiado aos profetas, no passado.

(2) Estavam muito satisfeitos consigo mesmos, e muito orgulhosos do que eram para render-se ante Jesus. Se Jesus tinha razão, eles estavam equivocados. Jesus não pode fazer nada com um homem até que este não lhe renda sua vontade e sua vida inteira. Os fariseus estavam tão contentes consigo mesmos, que não viam a necessidade de mudar, e odiavam a qualquer um que se propunha mudá-los. O arrependimento é a porta de entrada do Reino, e arrepender-se significa reconhecer o engano em que alguém viveu e dar-se conta de que somente em Jesus Cristo há vida, render-se a Ele, à sua vontade e ao seu poder, as únicas coisas capazes de nos transformar.

(3) Tinham muitos preconceitos para poder ver. Seus olhos estavam tão cegados com suas próprias idéias e preconceitos que não podiam ver em Jesus Cristo a operação da verdade e o poder de Deus.
O homem que é consciente de sua necessidade sempre verá maravilhas em Jesus Cristo. O homem que se fez teimoso em seu modo de ser e viver, e não está disposto a aceitar mudança alguma, o homem tão orgulhoso de sua própria justiça para poder submeter-se à vontade de outro, o homem tão cegado por seus preconceitos que já não é capaz de ver, sempre experimentará ódio frente a Jesus e procurará a forma de eliminá-lo.

Estudo sobre Mateus 9:35

Aqui, em uma só oração, encontramos uma descrição das três áreas em que consistia a essência da vida de Jesus.

(1) Jesus era um arauto. O arauto é o homem que leva uma mensagem de parte do rei. Jesus trazia uma mensagem de parte de Deus. O dever do arauto é proclamar certezas. A pregação sempre deve ser a proclamação de certezas. Nenhuma igreja pode estar composta de pessoas que acreditam, por assim dizer, por poder. Não apenas o pregador deve estar seguro do que crê a igreja, mas também deve está-lo a congregação. Nunca houve um momento em que esta certeza tenha sido tão necessária como hoje em dia.

Geoffrey Heawood, diretor de uma grande escola pública inglesa, escreveu que a grande tragédia e o problema de nosso tempo é que nos encontramos em uma encruzilhada da qual desapareceram os letreiros indicadores.

Beverly Nichols escreveu um livro composto integralmente com entrevistas com pessoas famosas. Um dos entrevistados foi Hillaire Belloc, um famoso intelectual católico inglês. Depois da entrevista Nichols escreveu: "Senti lástima pelo senhor Belloc, porque me pareceu que pelo menos uma parte de sua lealdade estava dedicada a uma causa que não valia a pena; mas mais lástima senti por mim mesmo e por minha geração, porque sabia que não "tínhamos lealdade alguma que dedicar a qualquer causa que fosse."

Vivemos em uma época de incertezas, uma época em que não se está seguro de nada. Jesus era o arauto de Deus, que deveu proclamar certezas às quais os homens podem consagrar sua lealdade; e nós também devemos estar em condições de ir: "Eu sei em quem tenho crido."

(2) Jesus era mestre. Não basta proclamar as certezas da fé cristã e dar por concluída nossa tarefa. Também devemos ser capazes de demonstrar o significado que essas certezas têm na vida diária e isso o ensino podia fazê-lo. A importância disto, e o problema que expõe, é que não se ensina o cristianismo falando dele, antes é preciso vivê-lo. O dever do cristão não é tanto falar de sua fé com outros, como lhes demonstrar, mediante sua vida, o que significa a fé cristã.

Um escritor que viveu na Índia escreveu o seguinte:

"Lembro um batalhão britânico que, como a maioria dos batalhões, assistia às reuniões religiosas que celebrava o capelão porque era sua obrigação fazê-lo, cantavam alguns hinos que gostavam e ouviam a pregação como se estivessem interessados. Depois disso não se lembravam da Igreja durante o resto da semana. Mas o trabalho de auxílio que desenvolveram durante o terremoto de Quetta impressionou tanto a um brahmin que imediatamente solicitou ser batizado, porque, segundo ele, somente a religião cristã era capaz de fazer com que os homens agissem do modo que esses soldados o tinham feito."

O que ensinou a esse brahmin o significado da fé cristã foi o cristianismo em ação. Para dizê-lo em sua forma suprema: Nosso dever não é falar de Jesus Cristo aos homens, e sim mostrar-lhes a Jesus Cristo vivo em nós. Tem-se dito que santo é o homem em quem Cristo volta a viver na Terra. Cada cristão deve ser um professor, e ensinar a outros o que é o cristianismo, não mediante suas palavras, mas sim mediante sua vida.

(3) Jesus curava. O evangelho que Jesus trouxe não se limitava ao anúncio de uma mensagem determinada. Traduzia-se em ações. Se lermos cuidadosamente os evangelhos poderemos dar-nos conta de que Jesus passou mais tempo curando os doentes, dando de comer aos famintos e consolando os tristes do que falando sobre Deus. Transformou as palavras da verdade cristã nos fatos do amor cristão.
Não somos verdadeiramente cristãos até que nossa crença em Cristo não conduza a uma ação cristã. Os sacerdotes, nos tempos de Jesus, teriam dito que o mais importante da religião eram os sacrifícios; os escribas teriam dito que a religião consistia essencialmente na Lei. Mas Jesus Cristo disse que a religião é amor.

Estudo sobre Mateus 9:36

Quando Jesus viu a multidão de pessoas teve compaixão delas. A palavra que se usa no original grego para descrever o sentimento de Jesus (splagchniszais) é a palavra mais forte que o grego possui para expressar a piedade que se pode experimentar por outro ser humano. Deriva-se do substantivo splagchna que significa vísceras, é uma compaixão íntima, o que descreve esse tipo de piedade que nos comove até o mais profundo de nosso ser. Nos evangelhos esta palavra só se esgotado por uma viagem que parece não ter fim. A palavra que se traduz dispersas é no original grego errimenvi, que significa estar prostrado. Pode descrever tanto ao que está prostrado por ter bebido muito como ao que está prostrado, depois de uma briga, por ter recebido feridas mortais.

Os dirigentes religiosos do judaísmo daqueles dias, em lugar de dar força para viver às massas do povo, desorientavam-nas com suas sutilezas interpretativas da Lei, que não serviam nem para ajudar a viver nem para reconfortar o sofredor. Quando deviam proporcionar aos homens uma fé que os ajudasse a manter-se erguidos, carregavam-nos e os dobravam sob o jugo insuportável da Lei, tal como a interpretavam os escribas. Ofereciam aos homens uma religião que era uma carga em vez de um apoio. Sempre devemos lembrar que a religião cristã não existe para desanimar, mas para estimular; não para esmagar aos homens com cargas, mas para elevá-los, como com asas.

Estudo sobre Mateus 9:37-38

Aqui temos um dos ditos mais característicos que Jesus jamais tenha pronunciado. Quando Ele e os dirigentes religiosos ortodoxos de sua época olhavam as multidões dos homens e mulheres comuns, tinham duas maneiras completamente distintas de vê-los. Os fariseus viam o povo como palha que devia ser queimada. Jesus os via como uma boa colheita, que devia ser colhida e entesourada. Os fariseus, em seu orgulho, esperavam a destruição dos pecadores; Jesus, em seu amor morreu pela salvação dos pecadores.

Mas aqui também encontramos uma das maiores verdades cristãs, e um dos supremos desafios do cristianismo. A colheita nunca será efetuada a menos que haja ceifeiros que façam o trabalho. Uma das resplandecentes verdades fundamentais da fé cristã é que Jesus Cristo necessita homens e mulheres. Quando estava na Terra sua voz apenas podia alcançar a uns poucos. Nunca saiu da Palestina, e todo um mundo estava aguardando. Ainda quer que os homens escutem as boas novas do Evangelho, mas ninguém ouvirá nada a menos que haja homens e mulheres que o comuniquem. Jesus quer que os meninos sejam instruídos na fé, mas nenhum menino o será a menos que surjam os mestres que os ensinem; Jesus Cristo quer que todos os homens escutem as boas novas, mas ninguém jamais ouvirá a menos que haja quem esteja disposto a cruzar os mares e as cordilheiras, levando a mensagem.

A oração não basta. Alguém poderia dizer: "Orarei pela vinda do Reino de Cristo todos os dias de minha vida." Mas neste caso, como em tantos outros, a oração que não vai acompanhada pela ação carece de valor algum.

Martinho Lutero tinha um amigo que compartilhava com ele seus pontos de vista sobre a fé cristã. Esse amigo seu também era monge e os dois fizeram um acordo. Lutero desceria ao pó e ao calor da batalha pela Reforma da Igreja no mundo; o amigo ficaria no monastério e o sustentaria com suas orações. E começaram a agir de acordo com este plano. Então, uma noite o amigo de Lutero teve um sonho. Viu um enorme campo de trigo, tão vasto como o mundo inteiro; nele havia um homem solitário que estava fazendo o trabalho da colheita – uma tarefa evidentemente muito superior a suas forças. Então chegou a ver o rosto do ceifeiro solitário – Martinho Lutero. E como um relâmpago viu a verdade que seu sonho lhe revelava. "Devo deixar minhas orações", disse a si mesmo, "e me pôr a trabalhar." E abandonando o refúgio piedoso de suas orações, desceu ao mundo para trabalhar na colheita.

O sonho de Jesus Cristo é que cada cristão seja um missionário e um ceifeiro. Alguns, possivelmente, não poderão fazer outra coisa que oferecer suas orações, porque a vida os impossibilitou, e suas orações, por certo, serão a fortaleza dos obreiros. Mas esse não é o caminho da maioria de nós, os que temos um corpo forte e uma mente sã. Se é preciso ser feita alguma vez a colheita humana "branca para a ceifa", todos nós devemos ser ceifeiros, porque há alguém que cada um de nós pode – e deve – levar a Deus.

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