Linguagem do Livro de Atos dos Apóstolos


Linguagem do Livro de Atos dos Apóstolos

Linguagem do Livro 

de Atos dos Apóstolos

Por Saul K. Watson

Numa famosa passagem Tucídides, o historiador grego, descreve seu dilema concernente à linguagem de seus personagens, e à política que ele adotara quanto a elas. Disse ele: “E muito difícil para mim lembrar-me com estrita exatidão das palavras realmente pronunciadas, tanto as que eu próprio ouvi, como as que me foram relatadas, vindas de outras fontes. É por isso que mostro os diálogos na linguagem em que, assim me pareceu, as diferentes personagens expressaram, nas questões sob consideração, os sentimentos mais adequados à ocasião, embora eu tenha, ao mesmo tempo, permanecido tão próximo quanto possível do sentido comum daquilo que foi dito” (18). Todavia, nem todos os historiadores antigos eram tão conscienciosos como Tucídides. Alguns compuseram diálogos bem livremente, e colocaram-nos nas bocas de suas personagens sem muita consideração para com as probabilidades históricas, e menos ainda para com os fatos históricos.

Tal fato levanta outra vez de forma especial a questão da historicidade de Atos. São as falas encontradas nesse livro relatos genuínos do que se disse, ou teria Lucas aderido à prática comum de compô-las? Não faltam os que se agarram a esta última opinião, afirmando que os discursos contêm muito pouco da pregação primitiva e bastante da teologia do próprio Lucas. Esta avaliação é feita com base na análise dos próprios sermões, muitos dos quais mostram uma estrutura comum, enquanto todos dão evidências da própria linguagem e estilo de Lucas. Entretanto, embora seja verdade que a maior parte dos sermões primitivos segue certo padrão único, também é verdade que esse tipo de padronização não se atem exclusivamente ao livro de Atos. Encontra-se, p.e., em Marcos 1:14-15 e numa série de passagens das cartas (veja mais ainda na disc. de 2:14-42). Em suma, a estrutura comum utilizada é mais antiga que Atos, e encontra-se noutras passagens mais amplamente do que em Atos. Seria razoável supor, portanto, que esse era o padrão homilético da igreja, e não algo imposto sobre os sermões pelo próprio Lucas.

Seja como for, dentro da reconhecida margem de semelhanças entre os discursos, há também lugar para a variedade. Primeiro, demonstram um desenvolvimento teológico definido, como se esperaria de uma pessoa, caso fossem sermões pregados ao longo de seus anos de formação. Além do mais, demonstram em alguns pontos uma teologia distinta da de Lucas (veja, p.e., a disc. de 4:24ss. e as notas sobre a disc. de 7:1-53). Em segundo lugar, às vezes demonstram as características distintivas do pregador original. É certo que as marcas de Lucas estão presentes ali, mas por trás delas ouvimos a voz de Pedro, que fala como o Pedro da primeira carta, e Paulo falando como o Paulo que conhecemos de suas cartas (veja, p.e., as disc. acerca de 5:30; 13:39; 15:13ss.; 20:17-38). Finalmente, dois sermões (2:14-39.e 13:16-41) ostentam o estilo hermenêutico dos rabinos; dificilmente alguém esperaria que o próprio Lucas os compusesse. E se tudo isto aponta para trás, para a quase certeza de que Lucas serviu-se de fontes, tal conceito se fortalece diante das marcas inegáveis que elas deixaram em seu uso do grego. “O estilo dos sermões não é tão polido como alguém poderia talvez esperar, caso se tratasse de produções literárias cuidadosas; na verdade, está presente o tipo de redundâncias e de pequenas incoerências que assinalam a incorporação de tradições numa estrutura redacional”(19) (veja, p.e., as notas sobre 3:16; 4:11; 4:25; 10:36ss., e a introdução a 10:34-43).

Assim é que podemos presumir que os sermões e discursos de Atos nos dão, segundo o “sentido genérico” de Tucídides, um guia confiável sobre tudo que verdadeiramente foi dito. Diz Bruce: “Não são invenções de Lucas, mas resumos que nos fornecem pelo menos a essência do que foi dito em várias ocasiões. Portanto, constituem fontes valiosas e independentes quanto à vida e o pensamento da igreja primitiva” (20).


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Notas
18. Tucídides, History of the Peloponnesian War (História da Guerra Peloponésia) 1.22.
19. Marshall, p. 40.
20. Bruce, Acts (Atos), p. 21.


Fonte: Novo Comentário Bíblico Contemporâneo de Atos dos Apóstolos de David J. Williams