Teologia do Livro de Gênesis

Teologia do Livro de Gênesis

Teologia do Livro de Gênesis

por Carlos Osvaldo (2006)




Deus é poderoso

O poder e a majestade de Deus manifestam-se primeiramente em Seu trabalho de criar, ordenar o universo e torná-lo habitável para o homem (caps. 1 e 2). Seu poder também se evidencia nas forças cataclísmicas que Ele reúne e desencadeia para julgar a humanidade pecadora (caps. 6–8), na maneira simples, mas engenhosa, pela qual Ele dispersa a geração pós-diluviana devido à desobediência à ordem divina para que se espalhassem e enchessem a terra (cap. 11).

O poder de Deus é mais sutilmente demonstrado na capacitação a Abraão e Sara para que, mediante a fé, gerassem a semente prometida depois de ambos haver passado o estágio reprodutivo (caps. 18, 21).

Em contraste com isso, vê-se o poder devastador da ira de Deus no juízo contra Sodoma e Gomorra (cap. 19). As palavras de José para seus irmãos em Gênesis 50.19-21 demonstram o ponto de vista mosaico sobre o poder de Deus à luz da história da nação. O que o homem pecador tenciona para o mal, Yahweh é mais do que capaz de suplantar para Seus propósitos de bênção e bem-estar para o povo de Sua aliança.

Deus é justo

A justiça de Yahweh reflete-se não tanto em declarações sobre Seu caráter quanto nos meios simples e diretos pelos quais Ele julga a falta de conformidade do homem com o padrão de conduta prescrito pelo Criador. Tal é o caso com Seu padrão de avaliar o relacionamento do homem com Ele no jardim (2.16), no julgamento imediato contra a rebelião do homem (3.8-19), em seu trato severo (mas paciente) com o crime de Caim e as justificativas pessoais apresentadas por este (4.1-16), no juízo do Dilúvio contra um mundo cuja inclinação e ações estavam em flagrante violação de Seu caráter (6.1-7), na destruição de Sodoma e Gomorra por sua depravação e seu estilo de vida egoísta (19.1-29), assim como em juízos individuais contra homens como Er e Onã (38.6-10).

Deus é gracioso

A graça de Deus lança uma luz brilhante sobre algumas das páginas mais sombrias da história humana. Quando Sua bondade original foi desprezada no jardim do Éden em troca da independência que as criaturas queriam Dele, foi Deus quem tomou a iniciativa de buscar o homem (3.8, 9), de prometer a vitória definitiva sobre a serpente pela semente da mulher (3.15) e de remediar a nudez e a vergonha do primeiro casal (3.21).

Quando a corrupção engolfou a humanidade, Noé [..] achou graça aos olhos do Senhor (6.8), e quando as águas do Dilúvio ameaçavam destruir os sobreviventes, Deus lembrou-se de Noé (8.1).

A graça intensifica-se quando o pacto de Yahweh com a humanidade se focaliza em Abraão e sua linhagem. Ló é preservado pela graça (19.1-31), Isaque é poupado pela graça (cap. 22), Jacó é escolhido por graça (25.19-23; cf. Rm 9.11, 12), assim como toda a família patriarcal é libertada da corrupção e miscigenação em Canaã pela provisão graciosa que Yahweh lhes faz de José como vice-regente do Egito (caps. 37-50).

Deus é singular

Há muito que se reconhece em Gênesis uma forte veia polêmica. Israel, depois de 430 anos no Egito, com seu politeísmo grosseiro, e a caminho para Canaã, com sua cosmogonia perversa e religião imoral, precisava entender seu Deus corretamente para não cair presa do animismo e da idolatria.

Assim, Gênesis 1 e 2 apresentam Yahweh como o Deus transcendente que existia antes do universo e dele não dependia para coisa alguma. Ele é senhor absoluto das forças do universo como o sol e a lua, as águas caóticas do oceano primevo, sobre as fontes e cursos de água, e mesmo sobre os grandes animais marinhos. Todos esses elementos tinham alguma conotação mitológica entre os povos do Oriente Médio antigo, particularmente entre os sumérios e os cananeus.

A narrativa do Dilúvio, que tem paralelos nos épicos sumérios de Gilgamés e Atrahasis, estende o tom polêmico ao descrever não um deus caprichoso e vingativo, que destrói a humanidade devido ao desconforto e à falta de sono causados pelo barulho dos homens, mas Yahweh, um Deus cujo caráter santo e propósitos benevolentes para com o homem eram menosprezados e violados pela conduta pecaminosa da humanidade. Além disso, revela um Deus cuja sabedoria permite ao homem escapar ao juízo por meio de uma embarcação realmente capaz de suportar as intempéries do Dilúvio, em contraste com outras versões antigas do evento, que descrevem embarcações totalmente incapazes de navegar e preservar a vida.5

A singularidade de Yahweh aparece em cores ainda mais brilhantes no fato de que Ele é um Deus que, apesar de transcendente e todo-poderoso, busca um relacionamento com Suas criaturas e a elas Se revela. Ele estabelece alianças (cf. 9.8-17; 15.9-21; 17.1-27) e garante seu cumprimento ao prover e proteger milagrosamente a semente que havia prometido (18.13-15; 22.15-18; 25.21).

A administração dos propósitos de Deus

O plano de Deus na história inclui Seu decreto de permitir o mal, Sua promessa e/ou ação de julgar o mal, o livramento do mal por meio de uma semente escolhida e o decreto de abençoar os eleitos a quem libertou. O livro de Gênesis é a sementeira de todas essas idéias nas Escrituras, e elas encontram expressão genuína nesse livro em que as grandes divisões da humanidade são estabelecidas de acordo com seu relacionamento para com o Deus que Se auto-revela.

O decreto de permitir o mal

É forçoso admitir que esse decreto é uma inferência das narrativas de Gênesis. No entanto, é preciso admitir que embora Deus jamais aceite responsabilidade pela prática do mal, Ele implicitamente afirma ser o autor da possibilidade do pecado pelo simples fato de ter oferecido ao homem uma condição de obediência (2.8, 9, 15-17) pela qual a santidade de que o homem era dotado como criatura pudesse ser exercida e desenvolvida. A presença de um animal que se rebela contra sua posição na Criação e permite tornar-se um agente de uma vontade oposta à de Deus é indicação de que o mal espreitava à porta da perfeita criação divina, mas não fora de Seu conhecimento ou autoridade (cap. 3).

Assim, um conflito se estabelece, o qual envolverá perenemente a semente da mulher e a semente da serpente. Caim e Abel e, depois, Caim e Sete são parte deste conflito, que se alarga e aprofunda a ponto de incluir toda a humanidade em Gênesis 6. Depois do Dilúvio, o conflito irrompe uma vez mais na linhagem da semente, originando a maldição sobre os cananeus.

Em última análise, este é um conflito entre a vontade rebelde das criaturas e a vontade soberana do Criador, conforme evidenciado na torre de Babel, em que o orgulho humano procura suplantar as intenções divinas para a humanidade na terra.

O fator de desapontamento, que Moisés sem dúvida queria que seus leitores percebessem para levá-los a depender de Yahweh, demonstra-se na maneira pela qual o mal se insinua na linhagem escolhida, primeiro com o incidente de Agar, depois com as trapaças de Jacó e a alienação de Esaú, e finalmente com os vários incidentes de perversão moral, de desonestidade e de ódio dentro do clã de Jacó. Por meio de todas essas circunstâncias, Yahweh apontava para Si mesmo como a única esperança de vitória sobre o mal, pois os patriarcas, na tarefa de dominar o mal, haviam sido tão falhos quanto Adão, Caim e Noé (cf. Gn 4.7).

A promessa/ação de julgar o pecado

Esta linha do plano mestre de Deus encontra seu início no chamado proto-evangelho de Gênesis 3.15. Exegeticamente falando, todavia, pode-se argumentar que a própria criação, conforme descrita em Gênesis 1, é um ato de juízo e redenção.

O triunfo prometido da semente da mulher é o tema central, cujo cumprimento é sempre aguardado no desenvolvimento do livro e, no entanto, jamais se realiza, mesmo quando as possibilidades de escolha da semente se limitam a uma das famílias no clã de Jacó.

O juízo de Deus contra o pecado aparece em todo o livro, desde as maldições pronunciadas no jardim do Éden até à disciplina criativa imposta por José a seus irmãos trapaceiros. Tal juízo, todavia, é sempre temperado com a misericórdia restauradora de Yahweh, por meio da qual Suas criaturas caídas encontram graça e esperança.

Libertação do juízo para os/pelos eleitos

Vários incidentes em Gênesis ilustram esta parte do programa divino na História. O nascimento de Sete (4.25) em substituição a Abel aparece como o primeiro exemplo, resultando na preservação do verdadeiro culto a Deus no contexto de uma civilização pagã desenvolvida pelos descendentes de Caim (4.16-24).

O evento seguinte é a chamada de Noé do meio de uma geração incuravelmente corrupta, para que fosse o agente da preservação da raça humana do juízo universal do Dilúvio (6.8). Quando a população da terra pós-diluviana se recusa a obedecer aos mandamentos de Deus e é julgada com a divisão das línguas, a chamada de Abraão (11.27–12.3) oferece uma nova fase no plano redentor de Yahweh, que é desenvolvido por meio de Isaque e Jacó, cuja descendência é salva da miscigenação corruptora com os cananeus pagãos por meio do agente final de libertação em Gênesis, José (a quem o próprio Faraó reconhece como um homem capacitado por Deus [41.38]).

Uma vez que o livro termina com o registro da morte de José e de seu sepultamento no Egito, Moisés tencionava que seus leitores percebessem que a saga da Semente da mulher ainda não acabara e que a tarefa de libertar o mundo do mal seria passada a outros instrumentos, até que a verdadeira Semente surgisse na História.

O decreto de abençoar os eleitos

Gênesis começa com uma progressão do caos (Gn 1.2) à bênção, à medida que toda a criação divina é pronunciada boa, e o homem, como governante mediatório de Deus, é abençoado com vitalidade e fertilidade com as quais deve encher a terra e desfrutar Deus e Sua criação (1.28-31).

A partir da Queda, bênção e maldição coexistem, nunca pacificamente, e o mal progride a ponto de quase eliminar a possibilidade de bênção. A essa altura, Yahweh intervém graciosamente e seleciona Noé como o canal pelo qual a bênção divina fluirá para uma humanidade renovada (apesar de ainda corrupta).

Gradativamente, o decreto de abençoar vai adquirindo forma mais definida. Sem é declarado herdeiro de um relacionamento especial com Yahweh (9.26), e sua linhagem é escolhida para receber e mediar a bênção. Essa linhagem passa por Éber a Terá, e deste a Abraão (11.20-26). A essa altura, chega-se a um ponto culminante, e uma promessa específica de bênção é anunciada (12.1-3); essa promessa é depois ampliada como uma aliança de concessão real (15.9-21) e uma aliança de suserania e vassalagem (17.1-27), que prendem a bênção de Yahweh à semente de Abraão, primeiro como recipiente, e depois como canal (cf. 12.3).

Argumento básico

Devido à natureza do livro de Gênesis, em que uma narrativa altamente estruturada é parte integrante da mensagem do livro, esta seção será breve, deixando a parte mais substancial do desenvolvimento para o próprio esboço sintético.

Gênesis é verdadeiramente um livro de origens. Moisés tinha como objetivo oferecer aos israelitas não apenas um conhecimento de seu passado nacional, mas uma percepção de como esse passado se conectava à história primeva da humanidade e até mesmo à origem do universo. O propósito do livro é promover confiança em Yahweh, o Deus da aliança, demonstrando como a nação devia ao Seu fiel amor sua existência e preservação ao longo dos séculos como o veículo pelo qual o conflito básico, iniciado no jardim do Éden, finalmente terminaria, e a humanidade seria abençoada.

O elemento chave no desenvolvimento de Gênesis é a expressão תּוֹלְדוֹת (hebraico para “gerações” ou “relato”), em torno da qual as narrativas e seus temas teológicos são estruturados.

O registro da história primeva da humanidade indica como a Criação caiu de uma posição de bênção e acabou sob maldição e juízo divinos, estando em contínua necessidade de redenção do pecado.

A criação do cosmos a partir do caos primevo revela Yahweh como o soberano Deus Criador, cujos propósitos benevolentes para com o homem incluem comunhão com Ele e governo sob Sua autoridade (1.1 − 2.3).

Quando o homem rejeitou sua posição de criatura moralmente dependente sob a autoridade de Deus, sofreu alienação do Criador e trouxe a maldição divina sobre toda a Criação (2.4 − 3.24).

A história da civilização reflete uma crescente degeneração da conduta humana no conflito entre as duas sementes. Tal degeneração acabou por provocar um juízo divino de dimensões planetárias, no qual apenas a graça de Deus preservou um remanescente (4.1 − 9.17).

O relato dos descendentes de Noé revela como a humanidade uma vez mais abandonou uma posição de bênção pactual sob a autoridade de Deus e colocou-se em uma condição de degradação, rebeldia e maldição (9.18 − 11.26).

O registro da história patriarcal de Israel indica como Yahweh selecionou uma linhagem dentre a humanidade e comprometeu-Se com ela em aliança com o propósito de trazer a lume, por meio dessa linhagem, a redenção do pecado que prometera no jardim do Éden.

A narrativa dos descendentes de Terá descreve como o estabelecimento da Semente prometida por Deus foi marcado por um conflito com o mal, no qual Deus finalmente triunfou à medida que Abraão aprendeu a confiar no Deus das promessas (11.27 − 25.11).

A genealogia de Ismael apresenta o desenvolvimento da promessa divina de que Abraão teria uma descendência inumerável (25.12-18).

O relato dos descendentes de Isaque reflete o crescimento do mal dentro da família escolhida à medida que o engano toma o lugar da fé como sua característica principal (25.19 − 35.29).

A seguir, o relato dos descendentes de Esaú indica como ele foi abençoado enquanto ainda estava em Canaã, e como seu clã cumpriu a predição de Isaque ao conquistar a terra de Seir (36.1-43).

O relato dos descendentes de Jacó indica como a graça de Yahweh preservou a família pactual da corrupção externa e da dissensão interna por intermédio de José e de sua peregrinação para o Egito (37.1 − 50.26).

Assim, o livro registra a história do homem desde o seu glorioso princípio no Éden até a narrativa bem pouco elogiosa da família escolhida, que deve enfrentar o conflito com o mal, mas que com mais freqüência é derrotada pelo mal do que o derrota. Moisés incorporou ao seu livro tanto uma sensação de frustração quanto um sentimento de esperança de que surja algo ou alguém capaz de enfrentar adequadamente e, por fim, vencer o mal, sendo, desse modo, capaz de cumprir as promessas da aliança. Ele ofereceu também o contexto da necessidade de um meio de regular a vida sob a promessa, um tema que será retomado em Êxodo e Levítico.


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Notas
[1]  No Épico de Gilgamés, o herói Utnapishtin supostamente escapa à destruição no Dilúvio em uma embarcação de formato cúbico, totalmente incapaz de flutuação estável e de dimensões insuficientes para a verdadeira preservação da vida.